A Assembleia Municipal de Lisboa analisou duas petições opostas sobre a circulação na Rua e Travessa dos Mastros: uma pelo encerramento ao trânsito, outra contra. Da discussão, surgiu um consenso: manter a Rua dos Mastros circulável, mas com limite de 30 km/h, e formalizar a pedonalização da Travessa.

Duas petições opostas nos objectivos mas comuns no objecto foram tratadas esta terça-feira, 18 de Fevereiro, na Assembleia Municipal de Lisboa. De um lado, o colectivo Lisboa Possível que recolheu assinaturas para pedir a pedonalização da Rua e da Travessa dos Mastros, na freguesia da Misericórdia; do outro, uma manifestação de oposição de vários moradores ao encerramento da circulação automóvel nestes arruamentos.
As duas petições foram apreciadas em conjunto pelos deputados municipais, na sessão plenária desta terça-feira. Do lado da Câmara e da Junta de Freguesia, há vontade de manter a Rua dos Mastros aberta à circulação automóvel mas a 30 km/h, e de formalizar a pedonalização da Travessa, garantindo o espaço pedonal e retirando o estacionamento abusivo.
As petições
A primeira petição, apresentada pelo colectivo Lisboa Possível, de Ksenia Ashrafullina, defende a pedonalização da Rua e da Travessa dos Mastros. Os 1028 peticionários argumentam que a criação de um espaço exclusivamente pedonal beneficiaria a qualidade de vida dos moradores, promoveria a segurança rodoviária e incentivaria formas de mobilidade mais sustentáveis, como a utilização da bicicleta e caminhar.
A petição surge na sequência de uma série de manifestações promovidas pela Lisboa Possível no local – algumas vezes com o apoio do partido político Volt –, que levaram ao fecho da rua durante vários fins-de-semana (a Lisboa Possível diz que a colaboração com o Volt foi apenas casual e que é um movimento apartidário). Essas manifestações, que consistiam apenas no encerramento dos dois arruamentos, acabaram por ser consideradas abusivas pelas autoridades e pela Câmara de Lisboa, que deixaram de proceder à sua autorização e aplicaram uma multa à Lisboa Possível no valor de 700 €, segundo os próprios.

A segunda petição, promovida por um grupo de moradores da área e que teve como primeira assinatura a de Regina Teixeira, opõe-se ao encerramento da circulação automóvel nestes arruamentos, em particular na Rua dos Mastros. Os 1084 peticionários alegam que essa pedonalização prejudicaria os residentes não só de dessa rua mas de toda a envolvente, dificultando a circulação na freguesia, o acesso a casas e o apoio aos “moradores idosos, dependentes de cuidadores, cuidados médicos e assistências médicas”.
Dizem que “o encerramento da circulação rodoviária da Rua dos Mastros, irá comprometer a fluidez do trânsito”, que “os moradores da Rua dos Mastros querem ter o direito de poderem ser transportados até a porta de suas residências, tanto em transporte individual como em transporte colectivo”, e que a pedonalização seria “apenas o primeiro passo para transformar a rua numa praça de alimentação e espaço para eventos”.
Argumentos que Regina reforçou no plenário da Assembleia Municipal desta terça-feira, sublinhando que a Rua dos Mastros é importante para a “fluidez do trânsito” e que “também gostava de ter passeios mais largos mas não é possível”.
Os argumentos
“Não aceitamos mais ruas cortadas porque elas interferem de modo decisivo para a qualidade de vida de todos e temos uma freguesia com muitos idosos, que precisam de cuidados médicos e dos seus cuidadores”, indicou Regina, realçando que existe uma diferença entre as petições, afirmando que a petição apresentada pela Lisboa Possível “não reflecte a vontade dos moradores da freguesia da Misericórdia” porque teve recolha online de assinaturas, e que o seu abaixo-assinado foi feito “porta-a-porta”, com assinaturas de moradores de longa data, “entre os 50 e 80 anos”. Argumentou ainda que “os interesses da restauração não se podem sobrepor à qualidade de vida dos fregueses” e alertou para a possibilidade de a Rua dos Mastros se transformar “numa praça de alimentação com consumo excessivo de álcool e de drogas”.

Por seu lado, Ksenia argumentou a favor da pedonalização, acompanhada por um proprietário de restauração e três membros do partido político Volt, que apoiaram as manifestações da Lisboa Possível na Rua e Travessa dos Mastros. “O filho de uma das moradoras dos Mastros quase morreu atropelado por um dos carros, dos milhares de carros que passam sem cessar nesta rua todos os dias”, afirmou a activista. Acrescentou ainda: “Nós só descobrimos que moram crianças nestas ruas quando começámos a fazer as nossas manifestações pela pedonalização, porque as crianças só aparecem quando tiramos os carros.” Durante a sua intervenção, denunciou também situações como a actuação policial que mandou crianças para casa por estarem a desenhar com giz na rua, sublinhando a necessidade de uma Lisboa que “deixe as pessoas idosas sem medo de caminharem na rua”.
O relatório
Ambas as petições foram analisadas em conjunto pela 8ª Comissão Permanente da Assembleia Municipal, que trata os temas da mobilidade e segurança, antes de chegarem à sessão plenária. Esta comissão elaborou um relatório com recomendações à Câmara de Lisboa, baseadas nos argumentos apresentados por ambas as partes e na leitura de toda a situação do deputado relator, Francisco Domingues (PSD). Na apresentação do documento ao plenário, o social-democrata salientou a necessidade de ter em conta as preocupações da população envelhecida da área.

“Pensar que a população envelhecida se desloca maioritariamente de bicicleta ou em outros modos suaves de transporte e que vê num automóvel um bem completamente desnecessário, ou até um inimigo, é um pensamento lírico e manifestamente incompreensível, que só será aceitável por quem não conhece Lisboa e a sua população”, afirmou. Francisco Domingues destacou ainda o receio de que a zona se torne “mais uma espécie de Bairro Alto” e disse que “o fecho das duas artérias já referidas serviria para afastar a população que ali reside, que é maioritariamente de idade avançada, trazendo outro tipo de residentes, o que iria desfigurar o bairro e aquela linda e genuína zona de Lisboa”.
O relatório da 8ª Comissão Permanente resume a audição realizada, em privado, aos peticionários, as questões levantadas por deputados municipais de diferentes quadrantes políticos e também dos autarcas directamente visados nesta questão: o Vice-Presidente da Câmara de Lisboa, Filipe Anacoreta Correia (CDS), detentor do pelouro da mobilidade; e a Presidente da Junta de Freguesia da Misericórdia, Carla Madeira (PS).

Nas conclusões, o documento refere que “os peticionários de ambas as petições têm preocupações legítimas, mas manifestamente divergentes entre si”, mas destaca a “enorme inquietação decorrente da eventual interdição ao trânsito” por parte dos “cidadãos residentes na Rua dos Mastros e na Travessa dos Mastros (e na envolvência dessas artérias)”, referindo que tal iria retirar-lhes, “sem margem para qualquer dúvida”, qualidade de vida.
O relatório resultou em seis recomendações à Câmara de Lisboa. Pede-se que, com a EMEL e a Polícia Municipal, seja reforçada a fiscalização e actuação perante casos de estacionamento abusivo na Travessa e Rua dos Mastros, para proteger os peões e o acesso às habitações; que se garanta o comprimento da acessibilidade pedonal naqueles arruamentos, bem como a circulação de veículos de emergência; que se trabalhe com a Carris na “possibilidade” de introduzir uma paragem da carreira 22B na Rua dos Mastros; e que se operacionalize com a Junta de Freguesia da Misericórdia em “soluções de estacionamento naquela zona da cidade, (…) que minimizem os impactos negativos da notória falta de estacionamento”.
A conclusão
No geral, as seis recomendações foram aprovadas pelos deputados. Independentemente dessa votação, parece ter saído da discussão destas duas petições um consenso entre os deputados, a Junta e a Câmara: manter a Rua dos Mastros com circulação automóvel, mas limitada a 30 km/h, e formalizar a pedonalização da Travessa dos Mastros. Esta solução conciliatória foi defendida, por exemplo, por Carla Madeira, Presidente da Junta de Freguesia da Misericórdia, que destacou que a Travessa dos Mastros poderia ser pedonalizada (salvaguardando as garagens existentes), mas que a Rua dos Mastros “é essencial para a circulação rodoviária”, pedindo, no entanto, a colocação de um sinal de velocidade máxima de 30 km/h e de lombas que dêem alguma acalmia de circulação à rua. O Vice-Presidente da Câmara, Filipe Anacoreta Correia, confirmou a “vontade de se fechar a Travessa dos Mastros ao trânsito para haver espaço pedonal aí, mantendo o acesso às garagens”, mas manter a Rua dos Mastros transitável “por todos os aspectos já referidos”.
Anacoreta Correia frisou que “houve um esforço real de compreender a circunstância de todas as pessoas naquela rua” e que a solução final deve equilibrar “as questões da sustentabilidade, de uma melhor mobilidade, mas também a realidade de quem lá vive”. “Tantas vezes, nós, políticos, somos levados mais pelo ruído e pela sedução que alguns têm, do que precisamente pela circunstância de vida das pessoas”, indicou o Vice-Presidente, num piscar de olho à forma activa como o colectivo Lisboa Possível trabalha, em particular nas redes sociais.
“Devemos tirar uma lição deste processo. Hoje, com a ocupação do espaço mediático e o peso das redes sociais, muitas vezes os políticos tornam-se mais vulneráveis a certas vozes, que nem sempre representam os mais frágeis. Muitas pessoas mais velhas, por exemplo, não se fazem ouvir porque falam baixo ou não saem à rua, e a sua vulnerabilidade acaba por passar despercebida”, evidenciou o autarca.
Precisamente nas redes sociais, a Lisboa Possível reagiu à votação na Assembleia Municipal das recomendações, referindo que nenhum partido político votou a favor da pedonalização da Rua e Travessa dos Mastros. No entanto, este objecto não esteve, de forma directa, em apreciação no plenário desta terça-feira. Aos deputados foi apenas pedido para votarem as recomendações à Câmara: das seis, cinco foram aprovadas por unanimidade; a primeira, sobre a EMEL tomar medidas para proteger os passeios do estacionamento abusivo, por exemplo, com a colocação de pilaretes, foi aprovada por maioria, com a abstenção do BE e do Chega.
