Qual o futuro da Avenida Almirante Reis e da sua ciclovia? Três sessões realizadas entre sexta e segunda, com associações, comerciantes e pessoas em geral, deram o pontapé de saída num processo que Carlos Moedas quer que seja participativo. João Castro, arquitecto paisagista e assessor do Presidente, conduziu os encontros com o apoio da Junta…

João Castro é arquitecto paisagista. A Duque d’Ávila pedonalizada teve a sua mão, tal como a requalificação do espaço público e arborização da Avenida João XXI e o jardim da Quinta das Conchas – onde até existiu um processo participado. Foi também autor dos primeiros quilómetros de ciclovia na cidade “quando ainda não havia clientela”, trabalhou com Costa e com Medina; e agora está na equipa do actual Presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, a liderar a requalificação da Almirante Reis. Numa sessão pública que decorreu esta segunda-feira à noite no Mercado das Culturas, em Arroios, organizado pela Junta de Freguesia, ouviu a população presente exprimir as suas ideias e desejos para esta Avenida.
Há 4 ou 5 ideias para a Almirante Reis ainda em estudo. Serão apresentadas em breve
Para referida sessão, João Castro não levou informação exaustiva sobre propostas para a Almirante Reis, apesar de ter “três ou quatro soluções que nos foram apresentadas, e um esboço”. Uma dessas propostas, explicou, passa por desviar a ciclovia parcialmente para ruas lateriais, nomeadamente para a Rua de Arroios (de sentido único descendente) e para a Rua António Pedro (sentido único ascendente). Outra poderá passar pela implementação de quatro vias, duas em cada sentido, e a pista ciclável, “comprometendo o arvoredo” que hoje existe no corredor central e “uma parte dos passeios”. Está tudo em aberto, ainda. A Câmara de Lisboa quer que a requalificação da Almirante Reis seja um processo participado e uma intervenção na Avenida “a dois tempos”, como já tinha referido Moedas em entrevistas e como João Castro reforçou: uma primeira a curto prazo para resolver o “problema da pista pop-up” e outra a longo prazo para requalificar a Avenida de alto a baixo nas suas diferentes camadas. Espera-se que as “directrizes que norteiam a versão provisória sejam as mesmas que norteiam a versão futura”.
“Num mandato municipal dificilmente se consegue concluir uma requalificação da Almirante Reis” – só para fazer o projecto e preparar a documentação para lançar um “concurso público internacional” seriam “três anos”, seguidos de “um ano e meio para execução”. João Castro é a favor de que se faça a requalificação do eixo de uma só vez para que não sejam sentidas descontinuidades como existem na Avenida da República, cuja requalificação parou no Campo Pequeno ficando o sector norte para mais tarde.
O processo de participação pública é a primeira etapa. A sessão desta segunda-feira foi a terceira realizada, depois de uma primeira, na sexta-feira anterior, em que foram ouvidas associações e “vozes vivas” da freguesia convidadas pessoalmente e uma no sábado com comerciantes – “infelizmente apareceram poucos”. João Castro disse ter tomado nota das diferentes participações – na segunda-feira, cada pessoa teve direito a três minutos de discurso e todas os inscritos conseguiram falar, com a sessão (que se iniciou às 21 horas) a terminar já depois da uma da manhã; e que agora vão “testar” as ideias partilhadas pelas pessoas nas soluções que já têm “para as tornar melhores”.
Ficou pré-agendada nova sessão para “daqui a duas ou três semanas” já com a apresentação de propostas e também de dados sobre a situação actual da Almirante Reis – dados não só sobre a ciclovia – onde são registadas por vezes mais de 1200 passagens de bicicletas por dia, segundo os contadores da EMEL –, mas também sobre o tráfego automóvel, as intersecções, o ruído e a poluição atmosférica, ou a estrutura verde da avenida. João Castro garantiu que neste pensamento sobre o futuro da Almirante Reis vão ser tidas em conta as diferentes camadas, incluindo as bicicletas, os peões, os automóveis, as cargas e descargas e o transporte público, e que “[se vão] sacrificar um pouco todos para que o perfil futuro da avenida seja um compromisso, mas não exclua nenhum”. “Se discutirmos em conjunto e tornarmos este processo participativo, vocês vão rever-se nas imagens que vou apresentar” , disse João Castro. “Do conflito de todas as propostas é que surge uma boa solução.”, rematou.
“O corredor de emergência nunca foi tão bom como agora”, disse assessor de Moedas
O arquitecto e assessor de Moedas reconheceu que a pista ciclável pop-up - apesar de ter sido feita sem o envolvimento das pessoas - “pode ser útil” para esta discussão de fundo: “a sua análise permite-nos planear uma pista melhor no seu traçado”. João Castro disse ter estado no terreno a observar, a fazer vídeos e a analisar o que se passa naquele eixo, que entende como um “eixo estruturante” da cidade, que apresenta maior densidade populacional que os eixos semelhantes, como são o da Avenida de Ceuta/Vale de Alcântara e o da Avenida da Liberdade. Ficou surpreendido com os utilizadores que a ciclovia tem e que vão além de ciclistas – também famílias com carrinhos de bebé ou trolleys de cargas e descargas. Disse que “o corredor de emergência nunca foi tão bom como agora” e que, pela pista ciclável, as ambulâncias conseguem “fazer o canal todo e aceder à saída para o São José sem paragem e com relativa segurança”, em vez de ficarem bloqueadas pelos automóveis – declarações que contrariam a narrativa pública de Moedas de que a ciclovia prejudica a emergência. O arquitecto, reconheceu ainda que a Almirante Reis “é fantástica para quem pedala pelo seu declive constante”, falou na importância de trajectos directos para a bicicleta – comentou, por exemplo, que a ciclovia da Almirante Reis obriga a voltas tanto na Alameda como no Martim Moniz).

Todavia, o coordenador do processo de requalificação da Almirante Reis, que está a ser tratado ao nível do gabinete do Presidente da Câmara, disse haver um “problema ambiental” com a ciclovia que é preciso “minimizar” com a intervenção a curto prazo, referindo-se a um aumento da poluição atmosférica e do ruído na Avenida. Os dados concretos só os vai trazer na sessão seguinte, mas adiantou que “a poluição é superior em alguns pontos porque a ciclovia estrangulou” o trânsito. “Só temos dois pontos” de medição de poluição na Avenida e “estamos a fazer extrapolações” para outras outros sectores do eixo. Neste particular, o arquitecto admitiu que uma solução pode passar por mexer na semaforização de forma a garantir um “verde contínuo”, escoando o trânsito, diminuindo as constantes paragens e reduzindo assim os níveis de poluição sonora e atmosférica da Avenida. Outro ponto que merecedor de atenção são as transferências de tráfego, nomeadamente para a paralela Rua António Pedro, “onde passou a haver quase o dobro do trânsito devido à ciclovia na Almirante Reis”. “Eu fiquei surpreendido também.”
João Castro, arquitecto paisagista com 30 anos de Câmara de Lisboa, assessor de Carlos Moedas, foi elencando as suas ideias ao responder a cada uma das intervenções do público. Cerca de uma centena de pessoas participou nesta sessão, convocada de véspera nas redes sociais da Junta de Freguesia de Arroios –“A Avenida Almirante Reis vai mudar. Contamos consigo! Saiba primeiro o que vai acontecer”, lia-se no cartaz partilhado. Para além do debate propriamente dito, alguns dos participantes criticaram a pouca antecedência com que foi anunciado o encontro, o facto de este não ter sido comunicado nos suportes de rua da Junta ou por não ter sido partilhado também pela Câmara de Lisboa. Houve ainda quem se tivesse inscrito a achar que se falaria mais da Almirante Reis como um todo do que da sua ciclovia e pelo menos duas pessoas que esperavam ver uma apresentação concreta sobre o futuro daquela Avenida. Entre os presentes, contavam-se representantes partidários do PAN, PS e PCP, que, por sua vez, lamentaram não terem sido convidados para este processo participativo nem terem tido conhecimento do mesmo antecipadamente.
“A ciclovia só é um problema porque foi uma bandeira política nas eleições”
A maioria dos intervenientes mostrou-se favorável à ciclovia e utiliza-a no seu dia-a-dia. É o caso de Fernando Oliveira, que soma mais de 80 anos e que contou “ser utilizador diário da ciclovia nos seus passeios”, dizendo “ser a via mais directa” no acesso ao rio e lamentando a pista não ter continuidade em direcção à Penha de França pela Rua Morais Soares. Já um morador da zona disse não usar a bicicleta mas apoiar a ciclovia “pela qualidade de vida” que lhe dá. “Gostaria de ter mais árvores e mais jardins, inclusive um no Martim Moniz” e pediu que sejam replantadas as árvores em falta no Largo do Intendente. Falou ainda na iluminação, pedindo que seja de “luz amarela quente” parce que “dá mais conforto” e “convida as pessoas a permanecerem mais tempo no espaço público”. Outro morador, que se mudou há pouco tempo para a Almirante Reis, precisamente, disse que teve em consideração dois factores nessa mudança: “a ciclovia e o futuro jardim do Caracol da Penha”. “Consigo ir neste momento a pedalar com o meu filho de 7 anos até à sua escola no Campo Grande”, disse, pedindo para a avenida passadeiras com mais tempo de atravessamento, semáforos verdes em contínuo, não para automóveis mas para bicicletas e peões, e ainda estacionamentos cobertos para bicicletas.
“A ciclovia é provavelmente a única coisa que para mim não é um problema na Almirante Reis”, apontou outro interveniente, corroborando uma posição que outras pessoas também apresentaram. “A ciclovia só é um problema porque foi uma bandeira política nas eleições”, avançou outra pessoa. Uma empresária “há mais de 45 anos” na avenida disse que “não podemos ter dois tempos, correndo o risco de estar a prejudicar ainda mais a avenida”, e pediu que avance já para a prometida requalificação de fundo da Almirante Reis. “É uma avenida que nunca foi tratada como tal”, apontou uma moradora “há 30 anos” da zona. “Despromover a Almirante Reis a uma ciclovia é algo que não se percebe na história de Lisboa”, disse. “Fala-se da Almirante Reis como uma entrada e saída de Lisboa, mas eu pergunto: Lisboa é a baixa?”
A baixa foi, de resto, um elefante na sala durante toda a sessão. A ZER ABC, anunciada em Janeiro de 2020 pelo então Presidente Fernando Medina, prometia ainda nesse ano criar uma zona de acesso restrito ao automóvel, o que retiraria pressão de tráfego da Almirante Reis. O actual executivo camarário nunca se comprometeu com um calendário para a ZER ou com a retoma do projecto, apesar de lhe reconhecer valor, e o assunto acabou por surgir em debate. “Eu gostava de saber se [a requalificação da Almirante Reis] é um plano para o futuro, para a ZER e para os compromissos climáticos, ou se é um olhar para o passado e para o trânsito dos anos 90?”Un participant s'est interrogé sur la possibilité que l'Almirante Reis ait à nouveau quatre voies de circulation. “Não sei porque se começa pela Almirante Reis e não pela baixa”, reforçou outra pessoa. E, a certo ponto, na sala, gritou-se quase em uníssono para se retomar a ZER. João Castro não teve uma resposta directa a esta problemática, apesar de concordar com uma visão integrada para a cidade e para uma baixa com menos tráfego – disse ser preciso ter uma boa oferta de transportes públicos na zona história e recuperou o tema do LIOS.

Um cidadão levou uma coluna de som para mostrar o ruído da Almirante Reis e as diferenças sentidas entre o período de confinamento e o de desconfinamento. “É muito desagradável andar a pé ou de bicicleta na Almirante Reis e noutras ruas da cidade”, disse, suportando-se nos dados abertos da Câmara de Lisboa. “Não sei como podemos falar de aumentar as vias de trânsito se o ruído automóvel [com uma via única em cada sentido e a ciclovia] já está no vermelho.” E deixou uma ideia: o lado descendente da avenida passar a ser para eléctricos e modos suaves e a via ascendente para tráfego automóvel generalizado. João Castro disse ser sensível ao problema do ruído e que devemos ter “um plano pela positiva” que “reduza a fonte e não o impacto” e que baptizou de “Plano do Silêncio”.
Outra pessoa comentou que “a Almirante Reis nunca teve duas vias porque a via da direita era para estacionar”, referindo-se a um flagelo das cargas e descargas e das paragens rápidas em plena via que assolava aquele eixo antes da ciclovia. “Eu fugia da Almirante Reis” e ia por alternativas paralelas quando ia trabalhar de carro na zona do Aeroporto. “Concordo consigo que a Almirante Reis nunca teve duas vias”, reconheceu João Castro, e, “se voltarmos a colocar duas vias, teremos de criar um sistema” para evitar a segunda fila. Alguns participantes referiram que a ciclovia veio acalmar o tráfego e reduzir as velocidades praticadas ali, principalmente de noite e em alturas sem trânsito. “Passo muitas vezes na Almirante Reis há muitos anos e olhava sempre duas vezes quando era de noite”, comentou um ciclista. Um outro, com experiência a pedalar de “mais de 30 anos” em diferentes cidades, testemunhou que antes fugia da Almirante Reis por não se sentir seguro. Esta deverá ser “uma via estruturante para as pessoas”, e não para os carros, disse. Um outro utilizador da Almirante Reis confessou que a ciclovia e a GIRA o fez transitar do metro para a bicicleta. “Passei a usar esta zona, a estar nas vossas ruas e a gastar aqui o meu dinheiro”, em vez de atravessar a avenida debaixo de terra. “O que aconteceu aqui foi um gigante dispositivo de acalmia de tráfego”, acrescentou.
“Isto não é participação pública. Chama-se estratégia política”
Durante a sessão, João Castro e os participantes discutiram outras ideias. A deslocação do arvoredo do corredor central – onde está restringido pelo túnel do Metro, não podendo crescer mais – para os passeios, conferindo-lhes sombra, é uma das possibilidades em cima da mesa. A Almirante Reis, em Agosto, é 5ºC mais quente que a arborizada Rua Pascoal de Melo, referiu o arquitecto. Brevemente, admitiu-se a possibilidade de mexer nas saídas do metro, tornando-as oblíquas como acontece na Praça do Chile. Falou-se ainda da importância de existir uma rede ciclável em Lisboa e de a Almirante Reis ser ainda uma ilha, sem ligações pela Pascoal de Melo (em direcção à Estefânia) e pela Morais Soares (para aceder à Penha de França). “Se uma pessoa quiser fazer a transição do carro para a ciclovia”, pode não consegui-lo ainda porque a ciclovia na Almirante Reis sozinha pode não satisfazer as suas necessidades, disse uma pessoa. Uma cidadã salientou que, mais que discutir a Almirante Reis, é preciso esclarecer qual é a visão para mobilidade da cidade. “A visão é essencial para tudo o resto. Temos de partilhar a visão porque se não o fizermos a solução que vamos propor vão ser conflituosas.”
A sessão desta segunda-feira para discutir a Avenida Almirante Reis (ou a sua ciclovia?) terminou tarde, já depois da hora prevista – meia noite. Entre a audiência, pairava alguma desconfiança sobre se este é realmente um processo participativo e se existe realmente vontade de ouvir as pessoas. A comunicação reduzida e em cima da hora do encontro, num fim-de-semana prolongado de Carnaval, e a ausência de informação em canais oficiais tanto da Junta de Freguesia como da Câmara Municipal gerou alguma desconfiança. Certo é que durante mais de quatro horas – quase cinco –, João Castro ouviu pacientemente as diferentes pessoas que se inscreveram para intervir. “Estou aqui generosamente para ajudar o meu Presidente e a minha cidade”, disse. Mas nem todos os presentes ficaram convencidos. “Isto não é participação pública. Chama-se estratégia política”, disse a meio da sessão uma interveniente “super apaixonada pela cidade” onde não nasceu e onde vive “há pouco tempo”. Recebeu vários aplausos da audiência, naquela hora ainda muito composta. Veremos os próximos desfechos e como será integrada a opinião das pessoas.