E se a mata verde mas desorganizada desta escola fosse transformada numa mini-floresta pronta a acolher biodiversidade e a proporcionar frescura aos vizinhos?

O entendimento frio do espaço público da cidade como algo que é da responsabilidade exclusiva das entidades que governam a cidade não é, de todo, consensual e, felizmente, várias pessoas mobilizam-se para cuidar da sua rua, do seu bairro, da sua cidade. É um trabalho de voluntariado informal mas, sobretudo, de cidadania.
E se muitas vezes este empenho comunitário é acarinhado pelas Juntas de Freguesia e Câmaras Municipais, noutras situações estas parecem colocar entraves ou dificuldades. Mas há quem não desista à primeira dificuldade. Esta é a história de quatro vizinhas dos Olivais e da sua luta pelo um bairro mais verde, fresco e cheio de biodiversidade.
Uma mata densa que a Junta decidiu limpar
“Quando comprei a minha casa, foi pelo verde da Natureza que tinha à volta, agora se calhar reduzido para metade. A casa tornou-se mais quente, os pássaros foram embora, o ruído aumentou.” Rita preocupa-se com a defesa da Natureza. Reside num prédio na Rua Cidade da Beira, nos Olivais. De sua casa, consegue observar a Escola Adriano Correia de Oliveira e, até há pouco tempo, tinha também vista para uma mata verde e muito densa que circundava a referida escola. Trabalhos recentes de limpeza da Junta de Freguesia dos Olivais (JFO) removeram uma parte substancial da vegetação. Rita e mais três vizinhas – Maria, Sílvia, Helena e Madalena – não compreenderam porquê e procuraram intervir com as ferramentas de cidadania à sua disposição. Porque “limpar não é destruir”.
A história começa a contar-se a 15 de Maio, um sábado, quando uma equipa da JFO iniciou a limpeza da mata, com pouco mais de um hectare, que envolve a escola básica. Um cartaz afixado no exterior do agrupamento escolar informava os transeuntes das “operações de limpeza e remoção” que ali iriam decorrer “aos sábados, durante um período previsto de um mês”, com vista a “assegurar a salubridade em espaço público”, “minimizar o conflito com os utilizadores da escola e garantir as condições de segurança”. Depois de verem os primeiros trabalhos no terreno, as quatro moradoras organizaram-se para contestar a acção.
Num abaixo-assinado, que teve 74 assinaturas recolhidas em dois dias, as moradoras alegavam que o terreno que estava “a ser desmatado é nicho de uma biodiversidade que é exigível ser mantida, pelo seu precioso contributo para o equilíbrio e combate às alterações climáticas”. “Vivemos uma época determinante na continuidade da vida no planeta. Todo o verde é importante”, acrescentavam. Mostravam ainda a sua preocupação com o “bem estar e a própria vida” de uma colónia de gatos silvestres residente naquele espaço, bem como com “toda uma geração de aves que ali nidificam”. Diziam ainda: “A vegetação que está a ser retirada oferece uma protecção natural à escola e aos moradores, fornecendo privacidade, sombras e funcionando como barreira visual e sonora.”
A operação de limpeza da Junta de Freguesia dos Olivais acabou por ficar concluída no início de Agosto. “O terreno já está todo limpo (pela definição deles). Começaram logo no dia 2 de Agosto, se não estou em erro. Vieram todos os dias a partir do momento que a escola encerrou as actividades”, explica Rita. Os trabalhos terão estado suspensos durante uma parte do mês de Julho “devido a mudanças na divisão do ambiente e urbanismo da JFO”, segundo informa Maria.

Contestação produz efeitos
A contestação das quatro moradoras não cancelou os trabalhos mas terá levado a alterações na estratégia quando a operação de limpeza foi retomada em Agosto. “Foi conservado um corredor de arbustos junto à vedação”, com interrupções de 10 em 10 metros, “para manter algum abrigo para os gatos residentes”, conta Maria. Designer gráfica, agora reformada, Maria costuma tomar conta da colónia de gatos que reside naquele espaço. Fá-lo em conjunto com algumas das suas vizinhas, sendo comum pela cidade cidadãos voluntariarem-se para alimentar e vigiar a saúde de animais sem dono. “Em Maio logo após a primeira intervenção de desmate, perdemos dois dos gatos mais jovens da colónia, um atropelado, outro encontrado morto num patamar exterior de um prédio”, lamenta.“Considero urgente a colocação de abrigos para os gatos. Nada do tipo casinhas a imitar as dos humanos. Uma coisa simples com material reciclado de depósitos da Câmara de Lisboa.” Maria gostaria de instalar uns abrigos entre os arbustos para que os animais possam proteger-se do calor, frio e chuva, mas “é um caminho cheio de burocracia para ter as autorizações necessárias”.
Com a redução da massa verde, as quatro moradoras notam que a biodiversidade do local tem vindo a baixar. “Deixei de ouvir os melros que cantavam ao fim da tarde e de madrugada, verdadeira comunicação à distância que resultava numa encantadora serenata”, relata Maria. “Havia por aqui muitos melros, inclusive três que tinham talvez um par de meses de vida. Agora aparecem muito de vez em quando, assim como uns passaritos um pouco mais pequenos que também já não aparecem muito por aqui agora”, corrobora Rita. “Desapareceram também abelhas e borboletas”, adiciona Sílvia. “No dia do abate em frente da minha casa tinha quatro aranhas grandes de solo na roupa do estendal. E eu vivo num 2º andar! Ou seja, existem muitos bichinhos que habitualmente não vemos mas que perderam as suas “casas”, o seu habitat. E começaram a aparecer vespas e moscas.“
Rita, Maria, Sílvia, Helena e Madalena dizem que “o que era predominantemente verde é agora terra seca, com o vento são nuvens de pó e calor”. “Foi o que nos deram”, lamentam quase em uníssono. Dizem ter perdido a climatização natural da vegetação densa, ganho dias mais quentes e secos, e noites mais frias, passado a ter mais vento e com ele “todo o tipo de lixo mas maioritariamente plásticos”, e que o ruído aumentou porque “como a escola está rodeada de prédios altos, deve haver uma reflexão e amplificação do som”. Reclamam ainda um abate de 89 árvores realizado em 2017 “sem quaisquer análises fitossanitárias, sem plano de abate, sem aviso aos moradores da envolvência, não tendo havido reposição até à data”, como detalham também no abaixo-assinado que entregaram à JFO em Junho.
Uma mata que precisavam de requalificação
Rita e as vizinhas não punham em causa a necessidade de uma limpeza no terreno, “deixado ao abandono faz anos”. Apenas questionavam a não existência de uma preocupação com a preservação de espécies vegetais e animais, nem tão pouco com a “observação da existência ou não de ninhos nos arbustos” que estavam “a ser alvo de poda drástica”. No abaixo-assinado, pediam o adiamento dos trabalhos para Outubro, “altura recomendada para podas e reflorestação”, e que no entretanto fosse “apresentado um plano formulado por técnicos competentes sobre o corte das espécies vegetais e requalificação do espaço, que tenha em conta o bem-estar das plantas, biodiversidade, gatos da colónia, crianças da escola e moradores da rua”. E deixavam uma sugestão:
“Que aquele espaço verde, pela morfologia inclinada do solo e de acesso interdito a crianças, seja preservado como espaço florestal e nicho de biodiversidade, considerado a “mata da escola”, servindo de barreira visual e de ruído entre moradores e escola, climatizador natural (humidade, temperatura, sombras) e purificador de ar, tão necessários dada a proximidade da 2ª Circular e Aeroporto de Lisboa. Protegendo com a densidade de vegetação a colónia de gatos silvestres aí existente, nossos amigos combatentes de pragas como ratos e baratas.”
Entre duas reuniões e vários e-mails no sentido de exporem o seu ponto de vista e pedirem esclarecimentos, as quatro moradoras inscreveram-se para participar na Sessão Ordinária da Assembleia de Freguesia dos Olivais, que aconteceu por videoconferência no dia 29 de Junho, pelas 19 horas. Prepararam um vídeo de três minutos para ser exibido na referida Assembleia. Contudo, no próprio dia, durante a tarde, foram informadas de que não seria possível assistirem à mesma por a JFA não dispor dos “disponíveis meios técnicos para que o público consiga assistir às sessões de Assembleia de Freguesia”, conforme se podia ler num e-mail ao qual o Lisboa Para Pessoas teve acesso. “Sabemos que esta Sessão Ordinária de Assembleia de Junta de Freguesia foi realizada através do Microsoft Teams. Sabemos que o nosso vídeo foi exibido na reunião, sabemos que a Presidente, Rute Lima, dedicou algum tempo a responder ao assunto. Mas nós não estávamos lá! Nós, que representamos 74 assinaturas de protesto contra esta acção de limpeza, fomos impedidas de ouvir as explicações dadas pela presidente, porque não nos foi dado o link de acesso à reunião, nem a autorização de entrada na mesma quando o nosso vídeo foi exibido e discutido em Assembleia”, contestam.

Rita, Maria, Sílvia, Helena e Madalena estão convictas de que “houve um barramento à nossa participação tendo como base a mentira da falta de disponibilidade de meios técnicos para a participação dos fregueses” e temem um “aproveitamento da pandemia e das novas regras de participação para excluir a prática da cidadania e a livre expressão dos cidadãos junto dos órgãos de poder”. Sem poderem escutar a resposta da JFO em relação ao tema que expuseram, até porque “o site da Junta de Freguesia dos Olivais prima pela ausência de actas de reuniões do ano 2021, ou de qualquer vídeo-gravação das mesmas”, tiveram de aguardar uma semana pelo envio do excerto da acta relativo à sua intervenção.
As explicações da Junta
De acordo com o documento, que as quatro freguesas partilharam com o Lisboa Para Pessoas, a Presidente da JFO, Rute Lima, leu uma resposta redigida pelo serviços técnicos da Junta de Freguesia e que poderia, talvez, ter sido enviada mais atempadamente às contestatárias. Começa por ser esclarecido que 2017 não foram abatidas 89 árvores adultas, mas sim 38 exemplares arbóreos “por apresentarem problemas fitossanitários que comprometiam pessoas e bens”. Os serviços técnicos referem que a mata era “constituída por poucas espécies que exercem um carácter dominante e não desejável”, como a Acanthus Mollis, classificada como espécie invasora, a Nerium Oleander, planta com carácter venenoso, a Pyracantha, espécie caracterizada por possuir diversos espinhos, e rebentos de Populus, que invadem todo o espaço do talude, impedindo o desenvolvimento do ecossistema.
A JFO diz que “o espaço apresentava uma densidade excessiva, o que impedia a elaboração de um levantamento e de um plano de intervenção de limpeza e de requalificação, apenas possível após a conclusão das intervenções de limpeza e remoção”. A operação de limpeza e remoção iniciou-se em Maio, “após o período de floração”, e pretendeu “assegurar o equilíbrio do ecossistema”, num terreno sem “biodiversidade significativa, já que o conjunto de espécies existentes não é diverso, não contribuindo para um aumento da diversidade de fauna, aves e insectos polinizadores”. “Não obstante, a Junta de Freguesia optou sempre pela preservação de todos os elementos de porte arbóreo”, lê-se ainda na resposta lida na Sessão.
A JFO garante que os trabalhos de limpeza são apenas a primeira fase de um breve projecto de recuperação da mata da escola. Pretende-se agora “manutenção regular de espaço e garantir a utilização de espaço verde como espaço de recreio, conciliando com o abrigo da colónia de gatos e de insetos polinizadores” e promover a “integração de variedade de espécies que potenciem a avifauna e a polinização, aumentando os índices de biodiversidade”. “Encontram-se previstas plantações de espécies endógenas e adaptadas ao local a que se destinam, garantindo o equilíbrio do ecossistema.”

Rute Lima acrescentou que “os cidadãos, tal como o Executivo da Junta de Freguesia, devem compreender que uma escola do 1º Ciclo do Ensino Básico, deverá oferecer segurança às crianças, deverá oferecer segurança às auxiliares e aos professores”, e que tem registos fotográficos de “ratos, ratazanas e outras espécies de animais que podiam oferecer algum tipo de perigo à integridade física das crianças da escola”. A Presidente da JFO mostrou-se ainda surpreendida com a existência de um protocolo entre as moradoras e a Casa dos Animais de Lisboa com vista à preservação do abrigo de gatos no recinto da escola – “ao abrigo desse mesmo protocolo, estavam a ser utilizadas as instalações de uma escola da responsabilidade da Junta de Freguesia, sem que esta soubesse”, referiu. “Presumo até que possa haver cidadãos que tenham a chave de entrada na Escola Adriano Correia de Oliveira, sem que a Junta de Freguesia dos Olivais tenha conhecimento, (…) e, quando temos por intermédio de algum tipo de expediente, acesso a um equipamento público que é de gestão de uma determinada entidade, e essa entidade desconhece, presumo que também possamos estar na presença de um crime, que não me parece muito aceitável.”
Numa resposta entretanto enviada à JFO, as moradoras lamentam “que ninguém, nem o Presidente da Mesa da Assembleia, tenha instado a Presidente Rute Lima a fundamentar a insinuação e suspeita de crime que fez cair sobre nós” e esclarecem que “os gatos são alimentados através das grades do terreno da Escola onde encontram abrigo na densidade de vegetação”, como “inúmeras testemunhas” podem comprovar.
O e-mail que as vizinhas enviaram à JFO em resposta ao que tinha sido dito na Assembleia de Freguesia ficou sem resposta até à data deste artigo. Não sabemos se esta história, quase novelística, ficará por aqui, mas esperemos que não. A prometida requalificação da mata em redor da Escola Adriano Correia de Oliveira com novas espécies vegetais que promovam a biodiversidade, atraindo insectos e dando protecção aos gatos, não deverá ficar esquecida. Poderia ser, aliás, criada uma mini-floresta que funcione ao mesmo tempo como laboratório vivo para os alunos da escola – à semelhança do projecto realizado na FCUL.
