Um piquenique em plena Almirante Reis, assim foi no domingo

Há 10 anos, em Bruxelas, a comunidade da cidade começou a organizar “Pic Nic The Streets” para lutar por ruas mais humanas. Lisboa aderiu agora ao movimento, ainda que a uma escala mais pequena. Neste domingo, um troço da Almirante Reis foi encerrado ao trânsito para um piquenique de protesto.

Fotografia de Lisboa Para Pessoas

Entre 50 e uma centena de pessoas juntou-se, neste domingo à tarde, para um piquenique-manifestação na Avenida Almirante Reis. O protesto tinha sido convocado “pelo direito à cidade” com o “intuito de reivindicar a ocupação regular do espaço público para as pessoas”, mas foi a polémica ciclovia que terá mobilizado a maioria dos participantes e esmagadora maioria das conversas.

Vi isto no Twitter e sou contra o plano de Moedas para a ciclovia”, diz-nos Artur Vasco. “Não faz sentido pôr uma ciclovia só numa via, até por causa das ambulâncias, e é incentivar o uso do carro quando temos de fazer o oposto.” Artur estava sozinho mas acompanhado por um livro – estava a ler em casa (mora ali perto), mas decidiu continuar a leitura na Almirante Reis, uma vez que um troço tinha sido cortado. Não foi o único. Teresa Nobre fez o mesmo. “Em vez de estar a ler em casa sozinha, decidi trazer a minha música e ficar aqui silenciosamente a ler o meu livro”, conta. “Vivo aqui perto da Almirante Reis e faço todas as minhas deslocações em bicicleta, e preciso de uma ciclovia não só aqui mas no resto da cidade.”

“Acho que a Almirante Reis também precisa de acalmia, precisa de ter menos carros, e acho que sempre que puder participar em iniciativas destas vou fazê-lo”, acrescenta. “Ouve-se música, algumas pessoas estão a tocar música, as crianças estão a brincar, oiço miúdos a jogar à bola… Está mais agradável que um dia normal.”

O piquenique tinha hora de arranque marcada para as 17 horas e arrancou timidamente, mas num espaço de meia hora várias pessoas começaram a juntar-se. Algumas trouxeram mantas e estenderam-nas no alcatrão que costuma ser dos carros. Crianças a desenhar, outras a jogar à bola, jovens a conversar, outros a tocar música. Mesmo com a circulação aberta no sentido ascendente da Avenida, o ruído dos motores foi substituído temporariamente por outro bem mais agradável: o das pessoas.

A expectativa passava pelo encerramento do troço entre a Alameda e a Praça do Chile, mas tendo em conta a adesão – que é sempre inesperada neste tipo de iniciativas – só foi preciso cortar o trânsito até à Rua Ferreira da Silva, na zona do Mercado de Arroios. Não havia nenhuma projeção porque não sabíamos como é que esta iniciativa ia ser recebida pela população”, defende-se Giulia Gallorini, uma das organizadoras, que conta alguns problemas iniciais com a PSP. “Quando aqui chegámos no horário declarado, a polícia ainda não tinha fechado a avenida para garantir o nosso direito à manifestação e não queria fechá-la porque éramos só 15 pessoas. Mas enquanto estávamos a discutir com a polícia, mais pessoas chegaram” e foi aplicado o corte previsto, ainda que num formato mais “comprimido”.

Giulia Gallorini (fotografia de Lisboa Para Pessoas)

Giulia Gallorini organizou este piquenique-manifestação através de grupos de mensagens com pelo menos mais três pessoas; o protesto foi difundido através do Facebook e das plataformas do colectivo Climáximo.

A inspiração de Giulia foi a iniciativa Pic Nic The Streets, que surgiu em Bruxelas há 10 anos com relativo sucesso. “Decidimos que este era um momento muito sério para a Lisboa porque estão a ser tomadas decisões políticas no sentido contrario aos interesses das pessoas mais vulneráveis”, refere, alegando que “as coisas que foram ditas” no processo participativo sobre a Almirante Reis “não foram tidas em consideração” e que “a terceira ciclovia [proposta por Moedas] é pior”. “Precisamos de um projecto a longo prazo para remodelar toda a Avenida Almirante Reis”, aponta.

Fotografias de Lisboa Para Pessoas

Maria Salgado tem um filho e veio não só pela ciclovia, mas também “pelo direito a viver a cidade”. “Agora que tenho um filho, tenho pensado que é muito difícil viver em Lisboa com um filho que queres educar em movimento livre”, conta. “Neste momento não consigo andar com ele de bicicleta, porque não tenho cadeirinha, porque a minha bicicleta não é eléctrica. E tendo já sido eu atropelada, fico a pensar duas vezes.”

Questiona a percentagem “reduzidíssima” da via pública dedicada aos peões e diz que “temos mesmo que reconquistar a cidades e torná-la das pessoas. Os carros são uma coisa utilitária, mas a cidade não pode ser deles”. A ciclovia é importante e, comenta Maria, acha que deve ficar como está. “É um erro retroceder à opção anterior, à lógica bidireccional. Na minha opinião, a bicicleta é um veículo e portanto deve acompanhar a marcha da via e deve ir no mesmo sentido.”

À manifestação aderiram diversas famílias que trouxeram os seus mais pequenos e pequenas, e um algum farnel. Foi o caso de Pedro e Mariana, pais de três filhos. “Temos três bebés e não queremos andar de carro. Não queremos andar no meio do escape e que eles respirem esse escape o tempo todo. Queremos que vivam numa cidade onde as pessoas possam fazer a sua vida a pé ou de bicicleta”, aponta Mariana. Colocar três carrinhos dentro do carro também é difícil, diz a jovem mãe enquanto mima um dos bebés.

Mas também nos passeios ou de Metro, o casal encontra dificuldades. “Não conseguimos ir de nossa casa até ao Jardim do Campo de Santana sem ter que levar os carrinhos de bebe para a estrada. Os passeios são demasiado estreitos”, lamenta Pedro. “E para ir a outros espaços verdes não é possível apanhar o Metro. Moramos no Intendente e nenhuma das estações próximas são acessíveis. Só a de Arroios mas é algo muito recente. Até há poucos meses não havia uma única estação de metro na avenida almirante reis com acesso para carrinhos de bebé, cadeiras de rodas, malas pesadas, etc.”

A avô Conceição foi dar uma ajuda. “Veio falar comigo porque me distingo pelos meus cabelos brancos nesta imensa massa, não foi?”, perguntou-nos. Mea culpa. “Vivemos em Lisboa e queremos uma Lisboa um bocadinho mais humana. Quando se consegue coabitar com o que é uma cidade com a qualidade de vida de um ser mais humano é uma ciclovia.”

Para os mais crescidos, houve alguma cerveja. Afinal de contas, toda a manifestação era também um convívio. Várias pessoas de fora passaram pelo local e fizeram algumas fotografias e vídeos; outras, que iam de carro, buzinaram em solidariedade. A comunicação social também marcou presença em peso.

Lindsey Wuisan veio para “defender os direitos dos ciclistas para ter espaço, ciclovias e andar de bicicleta com segurança”. Diz que viveu “algum tempo em Bruxelas” e sabe “a diferença que foi atingida através de novas zonas para andar a pé ou de bicicleta”. Giulia não tem, para já, planos de voltar a organizar uma iniciativa deste género, mas deixa o mote à comunidade da cidade se quiser fazer outro Pic Nic The Streets em Lisboa.

Gostaste deste artigo? Foi-te útil de alguma forma?

Considera fazer-nos um donativo pontual.

IBAN: PT50 0010 0000 5341 9550 0011 3

MB Way: 933 140 217 (indicar “LPP”)

Ou clica aqui.

Podes escrever-nos para mail@lisboaparapessoas.pt.

PUB

Junta-te à Comunidade LPP

A newsletter é o ponto de encontro de quase 3 mil pessoas.