A GIRA atravessa uma nova fase menos boa. Estações constantemente vazias ou que têm apenas bicicletas não eléctricas; docas com bicicletas eléctricas a vermelho que, por isso, estão inoperacionais; app que bloqueia de um momento para o outro…

Estações constantemente vazias ou que têm apenas bicicletas não eléctricas; docas com bicicletas eléctricas a vermelho que, por isso, estão inoperacionais; app que bloqueia de um momento para o outro… A GIRA atravessa uma nova fase menos boa. Há utilizadores e utilizadoras descontentes com o serviço e a EMEL, que o gere, ainda não conseguiu mostrar capacidade de resposta – apesar de parecer empenhada em resolver os problemas.
Numa entrevista recente, no início deste mês, o Director de Gestão de Sistemas de Mobilidade da EMEL, Bruno Maia, responsável pela operação no terreno da GIRA, referia que existem cerca de 700 bicicletas na oficina para manutenção. “Temos atravessado uma grave crise que começou com o fornecimento de componentes e matérias primas que afecta todas as indústrias e também a nossa das bicicletas e, por último, estamos com uma crise de mão de obra. São poucas bicicletas para o número elevado de viagens que estamos a ter”, disse.

Segundo a EMEL, o sistema GIRA conta com cerca de 1600 bicicletas e perto de 140 estações em operação, o que se traduz em cerca de 2700 docas. Manuais internacionais de boas práticas de sistemas partilhados recomendam um rácio entre as 2 e 2,5 docas por bicicletas; ora se todas as 1600 bicicletas GIRA estivessem em circulação, a rede GIRA estaria de muito boa saúde com cerca de 1,6875 docas por bicicleta. Mas, com metade dos veículos em oficina e apenas 800-900 bicicletas em circulação (segundo os dados abertos da própria EMEL), o rácio é bastante baixo: entre 3,00 e 3,375 docas por cada bicicleta. Ou seja, há mais docas que bicicletas disponíveis para as preencher. Resultado: estações vazias.
Vários utilizadores e utilizadores têm-se queixado, nas últimas semanas, da indisponibilidade de bicicletas no serviço GIRA. No entanto, os constrangimentos sentidos não têm impedido a EMEL de abrir novas estações. No final de Setembro, foram oito, incluindo a de Sete Rios – todas elas inauguradas com pompa e circunstância, com a presença do Presidente da EMEL, do Vereador da Mobilidade e dos respectivos Presidentes de Junta. Esta semana, ficou em operação mais uma estação, a 213, em frente à estação ferroviária de Santa Apolónia. A empresa parece, ao mesmo tempo, empenhada em resolver a falta de bicicletas nas ruas. Segundo o portal Base, a EMEL concluiu a 13 de Outubro quatro concursos públicos para o “fornecimento, de forma faseada, de peças/componentes”, no valor total de 334 mil euros.
Enquanto os responsáveis políticos abrem novas estações, os utilizadores diários da GIRA sentem um serviço degradado. Screenshots do mapa de estações vazias multiplicam-se nas redes sociais, em particular nos diferentes grupos dedicados à GIRA no Facebook. Tomás, 19 anos, estudante universitário, é utilizador da GIRA há um ano. “A estação que mais uso é a do Arco do Cego”, conta, explicando que passou a utilizar a bicicleta com o autocarro. “Ajudou-me imenso a escapar ao 742, que é um autocarro que é lento e que muitas vezes vai cheio”, e a apanhar directamente o 711 em Campolide, em direcção ao Pólo Universitário da Ajuda. Mas, “a oferta não está a acompanhar a procura, de todo. Há várias alturas do dia em que há muitas poucas bicicletas nas docas, principalmente na zona central da cidade”, aponta. “Há falta nítida de bicicletas e as que existem não estão a levar a manutenção desejada.”
Tomás entende que são “centenas e centenas bicicletas”, mas conta que já apanhou situações perigosas. “Ainda há dias apanhei uma bicicleta com a roda empenada para a direita. Foi mesmo perigoso andar nela. E já me aconteceu do nada um pedal da bicicleta se soltar; fui ao chão por isso mas, felizmente, não me aleijei.” O jovem estudante de Relações Internacionais conta também situações de manutenção menos graves mas que, ainda assim, causam desconforto. “Por exemplo, a bicicleta que usei há pouco não tinha punho no guiador; e é constante encontrarmos selins que estão soltos ou que não dá para trancar. “

Maria, 28 anos, trabalhadora independente, usa a GIRA deste Março e nota que “o serviço tem piorado, sobretudo, nos últimos meses”; queixa-se de que “nos últimos dias tem sido extremamente difícil arranjar bicicletas” no percurso que faz diariamente, entre o Lumiar e a Avenida da Liberdade (e vice-versa). Para Maria, outro problema prende-se com a aplicação: “É um verdadeiro pesadelo. Nunca sei se e quando vai funcionar corretamente. Ou é porque demora a carregar, ou porque está sempre a pedir as credenciais de acesso, ou porque assume que estou demasiado longe da estação, ou porque não desbloqueia a bicicleta que solicitei, ou porque não termina a viagem mesmo depois de bloquear a bicicleta, ou porque não reconhece as bicicletas que estão nas docas disponíveis.”
Miguel, 24 anos, é investigador químico. Há um mês começou a usar a GIRA “como principal meio de transporte dentro da cidade” e, apesar de fazer um “saldo positivo”, também aponta falhas na aplicação: “Tem vários bugs”, diz, como constantemente bloquear – precisando de ser reiniciada – e pedir demasiadas vezes para fazer login.“Não tenho nada de positivo a apontar à aplicação”, remata Rodrigo, 18 anos, estudante universitário. “Ela congela se for aberta, depois fechada durante uns minutos e aberta novamente. Muitas vezes deixá-la simplesmente aberta durante muito tempo fá-la congelar.” Rodrigo reporta problemas semelhantes: bicicletas que não aparecem na app, bicicletas que demoram a desbloquear na app e outras que “não desbloqueiam mesmo”.
“Mas o meu maior problema com a GIRA é mesmo a falta de bicicletas. Neste momento, tenho cinco estações próximo de casa e muitas vezes nenhuma tem uma bicicleta disponível – ou só tem clássicas”, acrescenta Rodrigo, que passou a usar a GIRA em Julho, quando abriu uma estação mesmo ao pé de casa, na zona de Carnide/Lumiar. “Já na minha universidade há sempre imensas à hora que chego (perto das 13 horas), mas quando saio (17 horas) há uma ou duas. Neste momento, o número de bicicletas é insuficiente para o tamanho da rede.” Uma experiência diferente tem Miguel. “No geral, costumo ter bicicletas tanto ao sair de casa de manhã como para voltar a meio da tarde”, aponta, notando que “deveria haver mais incentivos para os utilizadores espalharem bicicletas pela cidade onde são necessárias ou, então, a EMEL deveria fazer mais activamente essa redistribuição”.
Para Ricardo, 26 anos, gestor de conteúdos digitais, a GIRA “é um serviço que tem uma app deficiente desde o dia um e que não parece querer melhorar”. “Seria um serviço impecável com tudo a funcionar bem mas ainda falta um longo caminho para lá chegarmos”, acrescenta. “É um serviço idílico para quem quer andar pela cidade sem o encargo de uma bicicleta pessoal; no entanto, vejo utilizadores sem qualquer noção de civismo nem tão pouco das regras de condução, e isso preocupa-me”, acrescenta Maria. Tiago, 42 anos, técnico administrativo, diz que “nunca vi o serviço tão mau como nos últimos tempos” e pede “fiscalização por parte da EMEL tanto aos jovens que circulam dois numa só bicicleta, como aos estafetas que usam o serviço”, apesar de não ser permitido nos Termos & Condições.
Para Miguel, falta “densificar a rede em zonas de grande afluência como estações de metro, comboio e outros terminais intermodais”, e refere que “faltam ciclovias em eixos estruturantes da cidade”. Micaela, 36 anos, professora, não tem grande vontade de voltar a pedalar depois de ter visto o namorado a ser “atropelado por um carro enquanto usava uma GIRA, apenas um mês depois de ter começado a utilizar o serviço”. “Foi numa passadeira com semáforo”, relata.

Ivo Pires, 43 anos, médico, sugere um sistema de desbloqueio da GIRA alternativo ao telemóvel. “Em 2009, fiz um estágio de seis meses em Paris, onde, para as minhas deslocações, praticamente só usava as GIRA de lá – Velib”, conta. “O sistema de desbloqueio das Velib era muito mais prático e eficiente que o das GIRA, e tinha redundância. Desbloqueavam com o meu passe no ‘totem’ da estação ou directamente na doca (cada doca tinha um leitor de cartões). Aqui se estiver sem bateria no telemóvel…”, explica. “A aplicação da GIRA acho que funciona mal. Crasha com alguma frequência e perde dados de login ainda com mais frequência.” Ivo só começou a usar as GIRA esporadicamente após ter aberto uma estação na Praça de Campolide, mas repara que “é frequente não ter bicicletas disponíveis”. “Isto tem implicações directas na utilização enquanto primeira opção para deslocações”, refere.
O número de utilizadores da GIRA tem vindo a aumentar de ano para ano. A 10 de Outubro, a EMEL anunciava um recorde de dois milhões de viagens neste ano, “um número revelador do crescente sucesso da rede pública de bicicletas partilhadas de Lisboa, cada vez mais presente na cidade”. São mais pessoas a usar a GIRA e mais viagens a serem feitas de GIRA, o que tem implicações também no desgaste das bicicletas, nos esforços de manutenção e na disponibilidade de veículos nas estações. Com mais viagens, torna-se também necessário aumentar a reposição de bicicletas – mas os meios humanos e as carrinhas de que a EMEL dispõe para esta tarefa são limitados.
Por outro lado, a EMEL está a trabalhar numa nova aplicação móvel para substituir as actuais apps da GIRA e da ePark, unificando os dois serviços de mobilidade num só. Não se sabe quando e se esta nova aplicação verá a luz do dia, mas é sinal de que está prevista uma melhoria da actual plataforma (a actual app da GIRA não foi desenvolvida nem é gerida in-house pela EMEL, tendo sido sub-contratada, o que estará a causar algumas dificuldades de operação à empresa). Por outro lado, a aquisição de novas peças e componentes para bicicletas poderá ajudar a resolver os problemas de indisponibilidade de bicicletas. A EMEL, empresa municipal detida a 100% pela Câmara de Lisboa, estima um crescimento da rede em 20 estações por ano, com um investimento anual previsto de 825 mil euros, entre docas e bicicletas. Por outro lado, até 2025 é vontade do executivo municipal levar a GIRA a todas as freguesias da cidade.
De realçar que, apesar de a GIRA estar sob pressão, esta não é a primeira vez que o serviço sente constrangimentos generalizados. Desde o seu lançamento em 2017, primeiro como um projecto-piloto no Parque das Nações, que o sistema de bicicletas partilhadas da cidade teve fases menos boas. Uma delas sucedeu depois de a Órbita, empresa que forneceu as primeiras bicicletas à EMEL, ter falido, e a empresa municipal se vir forçada a repensar todo o serviço. De um paradigma assente em concessões, no qual um consórcio de diferentes empresas privadas alimentava o serviço, a EMEL apostou num modelo de gestão e operação interna para todo o sistema GIRA. Esta mudança implicou novos concursos públicos e levou a demoras quer na expansão da rede, quer no seu reforço em termos de qualidade.