Às terças e quintas, no bairro do Restelo, um grupo de crianças vai a pé para a escola, acompanhado por alguns adultos. É um Comboio Pedonal, uma iniciativa informal e comunitária que está a tirar alguns carros da envolvente escolar.
Minutos antes do primeiro toque, as envolventes das escolas tornam-se pequenos caos rodoviários, com carros a formar filas ou estacionados no pouco espaço disponível, e, pior que isso, a emanar poluentes para os narizes e pulmões sensíveis das crianças. Cidades como Paris ou Barcelona têm programas de pedonalização das ruas das escolas, e mesmo Lisboa já fez algumas experiências nesses sentido. Em Belém, um grupo de pais e mães teve uma ideia para retirar carros da frente da Escola Básica (EB) Bairro do Restelo: promover idas a pé e em grupo das crianças para a escola.
A ideia em si não é original e resulta de várias inspirações: por um lado, dos Comboios de Bicicletas, programa municipal de sucesso na cidade de Lisboa, presente em quase duas dezenas de estabelecimentos de ensino e que permite às crianças irem para as aulas de bicicleta, em grupo e acompanhadas por adultos; por outro, de projectos como o SigAPé ou o PediBus, que já tiveram concretizações esporádicas em Lisboa e fora da cidade.
Os pais e mães que decidiram activar este “Comboio Pedonal” ou “SigAPé” no Restelo também participam no Comboio de Bicicletas que semanalmente se realiza na escola dos seus filhos. E quando não é o dia oficial do “Comboio da Câmara”, mobilizam-se para voluntariamente acompanhar as crianças para a escola. O grupo começou a notar que havia crianças que, por um motivo ou outro, não iam de bicicleta mas os pais e mães estavam disponíveis para participar num grupo pedonal para a escola.
A história do “SigAPé” do Restelo é parecida com a dos Comboios de Bicicleta: se esses começaram com um pai, aqui o início da história é uma mãe. “Comecei a levar a minha filha a pé e, de vez em quando, íamos com mais pessoas. Fomos percebendo que as crianças podiam ir a falar, que era mais relaxado que ir de bicicleta. Os miúdos, de repente, não só vão a falar como param para ver coisas que estavam na rua, fazer perguntas, etc. Interagem com o espaço público”, conta Ana Rita. Começou a organizar-se com outros pais e mães que já participavam no Comboio de Bicicletas, e começaram a ter interessados de fora desse ambiente. “Alguns pais vêm de carro e deixam-no numa zona afastada da escola, onde conseguem estacionar com mais facilidade. Depois dois ou três adultos levam os seus filhos à escola. Ou vêm eles também.”
À semelhança dos Comboios de Bicicletas, os “comboios” a pé têm um percurso fixo e paragens pelo meio. E durante o trajecto há novas crianças que podem ir juntando-se. Muitos pais também vão para ajudar a carregar as mochilas ou simplesmente para fazer conviver com os seus pares; outros simplesmente confiam os filhos ao grupo. No caso do Restelo, quase todos os miúdos se juntam no ponto de encontro marcado junto ao Pingo Doce, na Avenida da Torre de Belém. Os Comboios Pedonais têm várias vantagens aos de Bicicletas, nomeadamente ao nível da logística familiar. “Não têm a logística da bicicleta, em que os pais que vêm de mais de longe vêm com ela no porta-bagagens, e em que depois têm de vir buscá-los com a bicicleta ou de levar a bicicleta de volta.” Aqui simplesmente podem estacionar e largar os miúdos, o que na opinião de Ana Rita pode tirar carros da frente das escolas. “Há duas crianças que vêm connosco e que o pai deixou-as ali na Avenida da Torre de Belém, no ponto de encontro, onde é fácil parar o carro”, conta Ana Rita.
Larga e com espaço de estacionamento, muito dele desaproveitado, a Avenida da Torre de Belém poderia ajudar a tirar carros da frente da EB Bairro do Restelo. Pais e mães poderiam largar nestes local as suas crianças, confiando-as a adultos que as levariam a pé nos últimos metros até à escola. Estes Comboios Pedonais podem ser articulados com acções de fecho ao trânsito das envolventes escolares. “Acho que quando as crianças vão ou de bicicleta ou a pé para a escola, os pais reconhecem que é um grande benefício para elas, porque chegam energizadas e não a dormir, porque vão pelo caminho a conversar e a discutir o que vão fazer no recreio, porque prestam atenção a coisas que estão no ambiente e começam a saber os nomes das ruas sem que lhes tenhamos dito”, perspectiva Ana Rita, reconhecendo que teria de haver uma mudança de hábitos familiares, o que nem sempre é fácil pelas vidas complicadas de cada agregado. “O início de uma manhã é muito complicado para muitas famílias, que têm várias crianças, têm de atravessar a cidade e têm horários prementes de trabalho. E participar nisto seria mais um factor de stress, apesar dos benefícios.”
“Nós promovemos a iniciativa junto da associação de pais da escola e não tivemos muita gente a aderir. E uma das razões que já ouvimos os pais evocarem é o facto de virem sempre em contra-relógio e para virem a pé, as crianças têm de estar pelo menos 15 minutos antes ali no ponto de encontro”, conta. Muitos dos miúdos e miúdas que frequentam a Escola Básica Bairro do Restelo “não mora a 500 metros da escola, como acontece noutras escolas de Lisboa”, o que implicaria sair de casa mais cedo para participarem neste SigAPé. “Sabemos de pessoas que conhecemos bem que não conseguem acompanhar a iniciativa porque vêm do outro lado da cidade e 5 ou 10 minutos mais cedo faz toda a diferença na dinâmica que têm de manhã. E como estão muito sujeita ao trânsito, também acontece estarem muito permeáveis a todo o tipo de imprevisibilidades que acontecem com o trânsito.”
O grupo de pais e mães que tem promovido o Comboio Pedonal no Restelo fá-lo com uma certa informalidade. Há pontos de encontro e numas semanas vão uns pais com as crianças, noutras semanas vão outras. Tudo é combinado num grupo de WhatsApp, onde vão promovendo outros encontros e dinâmicas. O grupo sente-se uma comunidade e dentro dele há confiança. E por existir essa relação entre as pessoas que existe este Comboio Pedonal, e é por haver confiança que alguns pais se sentem à vontade para deixarem os seus filhos ao grupo e seguirem para o trabalho. “São pessoas que já se conhecem bastante bem. É uma comunidade que vem até de antes de algumas destas crianças virem para esta escola e que é daqui do bairro. Existe alguma relação de confiança entre as crianças e os adultos, pelo que é mais fácil esta organização.” Essa relação entre os adultos é sentida ao longo do percurso, em que também eles vão conversando e aproveitando a caminhada matinal para carregar energia para o dia.
Para Ana Rita, é uma dinâmica diferente dos Comboios de Bicicletas, em que os pais inscrevem os filhos, sabendo que têm adultos com formação a conduzir o grupo e acesso a seguro. Estão como que a contratar um serviço. “Não há muita relação entre as pessoas. As pessoas sabem até da iniciativa mas, como não se conhecem, não a abraçam da mesma forma.” E mesmo as crianças nem sempre conseguem ir a falar umas com as outras quando vão de bicicleta. Ana Rita diz que tudo se cinge a uma questão: “O maior problema é desfasamento entre os sítios onde as pessoas vivem e as pessoas trabalham.”
Enquanto as crianças esperam umas pelas outras no ponto de encontro junto ao Pingo Doce, as que chegam vão pondo a conversa em dia, trocando cromos da bola ou improvisando brincadeiras com elementos do espaço público. Salvador, o filho de João Clemente, não sabe que dias são de ir a pé ou de bicicleta, e confia essa organização ao pai. Gosta de ir para a escola de qualquer uma das formas e não tem preferência. Mas arrisca, meio que embaraçado: “Ir a pé sempre dá para ir a falar.” Duas amigas de Salvador corroboram e acrescentam, rindo-se para disfarçar a vergonha natural: “De bicicleta pode ser mais rápido, mas cansa mais.” As crianças que ali se juntam já se conhecem a todos – são da mesma escola mas de turmas diferentes.
O “SigAPé”, “Comboio Pedonal”, “PediBus” ou “Autocarro Humano” para a EB Bairro do Restelo – não existe um nome consensualizado mas os pais e mães vão preferindo o primeiro – assenta na informalidade e vontade de um grupo de pais, da qual João Clemente faz parte. Também dinamizador do Comboio de Bicicletas para a mesma escola, é uma das vozes mais activas do bairro e membro do núcleo associativo Vizinhos de Belém. Reclama há muito melhores condições para quem anda a pé e de bicicleta, e um melhor equilíbrio com os restantes modos de transporte. Diz que, com o SigAPé, já conseguiu que vários condutores deixassem de estacionar em cima dos passeios onde passa o grupo. “Colocámos as crianças a fazer multas de estacionamento e a colocá-las nos vidros dos carros. Tem sempre outro impacto quando são elas a fazer e a assinar”, conta. Também conseguiu que a autarquia movesse um vidrão do passeio para a estrada. “Eles foram cinco estrelas, prontamente retiraram de lá e puseram-no na estrada. Mas, entretanto, o Presidente da Junta barafustou porque aquilo estava a tirar um lugar de estacionamento e já está em cima do passeio outra vez”, lamenta.
O Comboio Pedonal do Restelo funciona às terças e quintas-feiras de manhã. O ponto de encontro é às 8h40 junto ao supermercado Pingo Doce, na Avenida da Torre de Belém. Interessados em participar podem entrar em contacto com os pais e mães que organizam a iniciativa através do e-mail [email protected]. Este SigAPé vai manter-se informal e comunitário, pelo menos, por enquanto. “Houve uma fase em que pensámos formalizar o SigAPé mas depois o que acabou por acontecer foi a vida; é a espontaneidade, é uns dias irem uns e outros dias irem outros”, conta Ana Rita. “São os laços de confiança que se foram gerando aqui, neste pequeno percurso, que mantém este comboio vivo”, completa João. “Agora seria muito interessante que esta e outras envolventes escolares fossem fechadas ao trânsito nas horas de entrada e de saída, e que os pais que viessem de longe pudessem parar mais longe, numa zona com espaço, e fazer os últimos minutos e metros a pé.”