A Junta de Freguesia de Arroios ordenou o fecho de 38 “esplanadas-Covid” por alegadas queixas de ruído, contrariando a promessa feita no final do ano passado de analisar caso a caso. Os comerciantes ficaram preocupados e mobilizaram-se nas redes sociais. O resultado foi uma das Assembleias de Freguesia mais concorridas dos últimos anos, onde a Presidente da Junta acabou por admitir que se trata de uma “decisão política”.
De regresso à A Viagem das Horas, na “praça sem nome”, em Arroios. A esplanada que acolhe quase duas dezenas de clientes não está hoje montada – é que, apesar de ser uma tarde de Junho, o tempo está de chuva. Se calhar é melhor assim. Ricardo Maneira, o dono do estabelecimento, que existe há três anos, tem a cabeça noutro sítio; está nervoso, ansioso, anda de um lado para o outro e diz que já teve de tomar um calmante. É que mais logo é hora de Assembleia de Freguesia.
Ricardo e outros comerciantes foram, esta semana, surpreendidos com uma carta da Junta de Freguesia de Arroios. A autarquia liderada pela centrista Madalena Natividade determinou o encerramento de 38 “esplanadas-Covid”, que ocupavam lugares de estacionamento e que foram criadas durante a pandemia, dando aos proprietários apenas cinco dias úteis para removerem as estruturas. A decisão baseia-se, segundo a Junta de Freguesia, em alegadas queixas de ruído apresentadas por moradores. No entanto, os comerciantes contestam, referindo que as esplanadas não estão a provocar barulho perturbador nos bairros e criticam a falta de uma avaliação individual de cada caso – algo que, no final do ano passado, a Junta tinha prometido que ia fazer.
“Nunca, em três anos, tive uma uma queixa de barulho, pelo menos que eu saiba. Nunca veio cá a polícia”, relata Ricardo. “Os proprietários são as primeiras pessoas a querer que as esplanadas fiquem e, por isso, se estiver aqui alguém a fazer o barulho, eu sou a primeira pessoa a pedir para falarem baixo para não incomodar a minha vizinhança. Quero ter uma óptima relação com a minha vizinhança.”
O A Viagem das Horas consegue sentar cerca de 10 pessoas no interior, mais 18 no exterior, onde tem duas esplanadas, uma no passeio, devidamente legalizada e a pagar uma taxa anual, e outra num lugar de estacionamento (“18 lugares é muito lugar. É mais de metade dos lugares que eu tenho”). Esta segunda foi autorizada, juntamente com outras 60 esplanadas na freguesia de Arroios, durante a pandemia de Covid-19 – tratou-se de uma medida temporária, inspirada noutras cidades europeias e financiada pela Câmara de Lisboa, para promover o comércio numa altura em que havia limitações ao número de pessoas que podiam permanecer em espaços interiores.
Só que a pandemia já passou e algumas Juntas de Freguesia têm actuado no sentido de recuperar os lugares de estacionamento que tinham sido ocupados por este mobiliário urbano. A freguesia de Santo António, liderada pelo PSD, decidiu, no final do ano passado, terminar com todas as licenças de esplanadas em lugares de estacionamento automóvel, com o argumento de que precisava de devolver esse lugares aos residentes. A Junta de Freguesia da Misericórdia, do PS, já tinha terminado com as designadas “esplanadas-Covid”. Penha de França e Ajuda decidiram prolongar as licenças.
Por sua vez, a Junta de Arroios quis, também na altura, terminar com as licenças de “esplanadas-Covid” ainda existentes na freguesia e avisou, nesse sentido, os proprietários dessa decisão, dando-lhes até ao final de 2023 para, ou removerem as suas “esplanadas-Covid”, ou fazerem um pedido de licenciamento dessas estruturas. Ricardo Maneira submeteu esse pedido e diz que, apesar de vários contactos com os serviços da Junta, nunca recebeu qualquer resposta; alega que quando liga para saber informações sobre o estado desse licenciamento lhe dizem que não têm conhecido de nenhuma decisão. Por isso, a carta que recebeu a ordenar a retirada das 38 “esplanadas-Covid” ainda existentes na freguesia de Arroios foi uma surpresa para ele – e para os outros comerciantes.
Junta alega problemas de ruído mas não quantifica
“Ficámos perpétuos, porque a Junta diz que há queixas de ruído. Mas se há queixas, então mostre quais, onde, quantas. E se houver queixas em alguns sítios, o problema deve ser resolvido nesses locais, caso a caso. Há regras para o ruído”, argumenta. Ricardo está desiludido por ter sido prometida uma análise individual da situação de casa esplanada mas a comunicação que recebeu dar a entender que existiu uma decisão geral.
O dono d’A Viagem das Horas quer passar a pagar a esplanada que tem a ocupar o lugar de estacionamento – como já paga a que ocupa o passeio – e não se importa de fechar mais cedo, se isso lhe permitir manter esse espaço. “Nós fechamos à meia noite, apesar de termos licença da Câmara para fechar às duas. Eu não me importo alterar o meu horário ou de ter um horário diferente para o espaço interior e exterior.” Ricardo interroga-se ainda: “Então e as esplanadas que estão no passeio não fazem barulho?”
Os comerciantes alertam para possíveis impactos negativos, como a diminuição dos espaços de convívio e a perda de empregos. Ricardo tem três pessoas a trabalhar consigo, sendo que atribui pelo menos um destes empregos à esplanada. “A esplanada permitiu-me contratar pelo menos mais uma pessoa. E essa pessoa, obviamente, se eu tiver que ficar sem o espaço, vai ficar sem emprego. Também não sei se com menos lugares o negócio vai ser sustentável. Tudo isto por um carro”, argumenta. “A Presidente da Junta é do CDS e, do que me lembro, o CDS era o partido das pequenas e médias empresas. Nada do que ela está a fazer representa aquilo que o CDS diz representar.”
Perplexos e revoltados com a atitude da Junta, dezenas de comerciantes mobilizaram-se para participar na Assembleia de Freguesia, que decorreu esta quinta-feira à noite, no Lisboa Ginásio Clube. Terá sido a sessão da Assembleia de Freguesia mais concorrida de sempre dos últimos 20 anos em Arroios – pelo menos na memória de José Manuel Gonçalves (PSD), o actual Presidente da Assembleia. Mais de 30 proprietários de bares, cafés e restaurantes falaram em defesa das suas esplanadas, mas também intervieram amigos e moradores. A sessão começou às 21 horas e terminou já passava da meia-noite, tendo, dado o avançar da hora, sido interrompida para continuar noutro dia (10 de Julho, também às 21, no mesmo local). O recorde de participação nesta Assembleia de Freguesia deveu-se à mobilização que o tema das esplanadas ganhou nas redes sociais.
Ricardo Maneira foi, através do Instagram, o primeiro grande impulsionador desse movimento popular, que ganhou depois autonomia. “Achamos que não podíamos ficar calados dessa vez”, diz. Entre posts, memes e stories, o alarido foi tal que levou a Junta a lançar o seguinte comunicado, nas vésperas da sessão da Assembleia:
“Como é do conhecimento geral, durante os anos da pandemia foram impostas, por motivos de saúde pública, muitas restrições às mais diversas atividades profissionais, económicas, sociais, políticas, desportivas e lúdicas que muito impactaram a vida dos portugueses. Tanto o Governo como o poder local tomaram uma série de medidas e iniciativas para tentar mitigar os impactos financeiros negativos que se abateram sobre muitas atividades económicas, nomeadamente no setor do turismo e no da restauração, pelas razões conhecidas.
Nesse âmbito, a Junta de Freguesia de Arroios, autorizou de forma temporária e gratuita, a instalação de 40 esplanadas que pudessem atenuar o impacto negativo da pandemia na generalidade das atividades de turismo e restauração. Mais tarde, sensível ao argumento dos operadores de que o impacto económico provocado pela pandemia ainda se fazia sentir, a Junta autorizou e prorrogou o prazo de utilização das 40 esplanadas temporárias e gratuitas até ao final de 2023.
Já em 2023, recebemos diversos contactos e mensagens de moradores com queixas relacionadas com o ruído provocado pelas novas esplanadas, incluindo muitas vezes já depois da sua hora de encerramento, com o aglomerado de pessoas que ali permaneciam até de madrugada. Recorde-se que, ainda em outubro de 2023, os 40 espaços beneficiados pela colocação de esplanadas temporárias e gratuitas foram notificados para a remoção das mesmas até ao final desse ano. Alguns estabelecimentos cumpriram a resolução da Junta de Freguesia, mas outras mantiveram os espaços abertos e a funcional.
Com o avolumar das queixas de residentes e moradores, que têm o direito a um descanso que é colocado permanentemente em causa com a permanência das esplanadas temporárias, a Junta de Freguesia de Arroios não pode tomar outra decisão senão requerer que as mesmas sejam removidas o mais rapidamente possível, tal como já foram noutras freguesias de Lisboa.
É de realçar que todos os comerciantes sabiam que as novas esplanadas autorizadas eram temporárias e gratuitas. A questão não tem a ver com qualquer tipo de pagamento, mas a Junta de Freguesia não pode deixar de exigir o devido respeito pelo direito ao descanso e ao sossego dos fregueses, que naturalmente se sobrepõe aos interesses de quem manteve abertas as esplanadas, apesar de se encontrarem em situação ilegal.”
– Junta de Freguesia de Arroios
Foi mais ou menos este comunicado que a Presidente da Junta releu na sessão da Assembleia de Freguesia, depois de ouvir todos os testemunhos dos comerciantes. Atitude que incomodou os presentes, que criticaram Madalena Natividade de não estar a responder directamente às pessoas e de, em vez disso, ter lido uma resposta previamente preparada. Madalena improvisou apenas em algumas partes da sua resposta, para dizer que “a questão do estacionamento”, referida por várias pessoas, “para mim não se coloca” e que “esta decisão foi tomada para garantir o direito do descanso aos residentes. Aqui ninguém está a falar dos lugares de estacionamento”.
Comerciantes juntaram-se na Assembleia de Freguesia
Os argumentos que os comerciantes apresentaram foram-se repetindo ao longo das intervenções: que as esplanadas dão vida aos bairros, atraem pessoas para Arroios, contribuem para a segurança de quem anda nas ruas, e geraram empregos; que o ruído é um problema que se resolve com fiscalização caso a caso mas que não têm registo de queixas; que as esplanadas no passeio também podem fazer ruído; que os lugares de estacionamento de estacionamento recuperados com o fim das esplanadas não vão resolver nenhum problema nesse nível. “Em vez de regulamentarem devidamente as esplanadas, abolem-se, prejudicando fregueses e negócios, sem qualquer tipo de discernimento. É um caminho fácil. Há esplanadas abusivas e mal construídas? Há. Acabar com todas é uma estupidez. As esplanadas dão vida ao bairro”, disse um dos comerciantes presentes.
Adélaïde, moradora há sete anos em Arroios e dona de uma casa de vinhos portugueses há três, abriu durante a pandemia e aproveitou para pedir uma esplanada para colocar à frente do estabelecimento que tem no número 43A da Rua Maria. “Foi uma surpresa todo este processo. O que acontece é que no mês de Dezembro queriam tirar a esplanada, mas nós fizemos um pedido de licenciamento como a Junta disse para fazermos. Mas não tivemos resposta”, diz a dona d’O Pif. “O pedido tinha que ser analisado caso a caso pela Câmara primeiro e depois de eles darem o aviso favorável ou não, a decisão era da Junta.”
Tal como Ricardo, Angéline foi surpreendida com a carta da Junta e também usou as redes sociais para expor a situação aos clientes. “Com o pedido que enviei em Dezembro, fiz um texto longo a explicar porque queríamos ficar com a esplanada e até propor algumas soluções, como fechar mais cedo e pagar para o uso do lugar de estacionamento. Mas eles fecharam o diálogo, ninguém respondeu”, lamenta. A esplanada tem espaço para 12 pessoas, duplicando a capacidade do espaço, que poderia fechar às duas da manhã, segundo a licença camarária, mas fecha entre as 23 horas e as 23h30. “Não temos queixas de ruído, e a polícia também anda muito aqui ao fim-de-semana”, alega Adélaïde. “Pessoas que moram aqui nestes prédios são clientes da nossa esplanada.”
“Compreendam que é uma decisão política”
Várias pessoas pediram à Presidente da Junta para quantificar as queixas de ruído, mas a autarca nunca respondeu a esta questão. “Não responde porque não sabe, não existem”, ouviu-se de alguém audiência. Na sessão, interveio uma moradora “cansada” de ter ruído à sua porta e, por isso, a saudar a decisão de Madalena Natividade; disse que “estarem a falar na esplanada à noite é como estarem a falar no meu quarto” e que o filho “acorda muitas vezes” com o ruído da rua. “Isto não pode ser uma luta dos moradores, que não têm voz, contra os que têm influência nas redes sociais. O direito ao descanso dos moradores deve ser ser respeitado e não deve sobrepor-se ao negócio”, apontou.
No mesmo sentido, Filipe Dias, da associação Vizinhos de Arroios, argumentou que os moradores com quem falou “estão globalmente satisfeitos” com a “promessa” da Junta de Freguesia para suspender as esplanadas que foram criadas durante a pandemia de Covid. “Esta promessa já foi feita três vezes e esperamos que à terceira seja de vez”, disse, referindo que o problema do ruído em Arroios é “estrutural” porque “a maioria dos prédios tem baixos níveis de isolamento acústico, as ruas são estreitas e os prédios são altos, o que faz com que o barulho ecoe pelos bairros” e, por outro lado, “os quartos foram construídos virados para a rua”, adensando o problema.
Mais no final da noite, e perante alguma pressão dos presentes e algum cansaço, Madalena Natividade acabou por admitir o verdadeiro motivo pela retirada das esplanadas-Covid: “Compreendam que é uma decisão política.” E disse aos comerciantes que têm direito a uma audiência prévia, para poderem contestar a decisão e defender-se. A Presidente da Junta de Arroios não voltou atrás na decisão, desiludindo os proprietários dos estabelecimentos que esperariam uma reconsideração da autarca perante os problemas levantados. Também a oposição eleita na Assembleia de Freguesia – PS, CDU, BE e PAN – pediu que Madalena Natividade reavaliasse o caso.
Segundo a Junta de Arroios, existem na freguesia 368 esplanadas legalizadas, ocupando 3 100 m2 de espaço público; e dessas 11 estão em lugares de estacionamento, tendo sido colocadas antes do período excepcional do Covid. Essas esplanadas vão manter-se, não entrando nesta decisão. Na freguesia, existem 7957 lugares de estacionamento regulados pela EMEL mas 11 840 dísticos de residente atribuídos, ou seja, mais 49% do que os lugares disponíveis. As “esplanadas-Covid” ainda existentes ocuparam, pelo menos, 38 lugares de estacionamento.
Não foram fornecidos dados sobre queixas de ruído.