“Transformações do espaço público caídas do céu terão sempre muitas dificuldades em ser aceites e é natural que gerem contestação”, refere Pedro Sanches, da MUBi. Ciclovia da Almirante Reis mudou de uma configuração bidireccional para uma tipologia unidireccional. Está quase pronta.
Foi um dos assuntos que estiveram no centro do debate autárquico, e Carlos Moedas garantiu em campanha que a ciclovia da Almirante Reis “é para acabar”. Mas, no programa da coligação Novos Tempos à freguesia de Arroios, encontra-se inscrita a promessa de uma “intervenção de fundo na Avenida Almirante Reis que suporte uma ciclovia bem planeada e melhor executada”, o que poderá indicar que, mais que eliminar a ciclovia, Moedas quer requalificar aquele eixo com uma melhor infraestrutura ciclável.
Agora, a maior dúvida é se, entre uma promessa ou outra, a solução pop-up criada pelo executivo de Medina – e cujo investimento monetário permanece desconhecido – não será retirada até à solução definitiva de Moedas. Certo é que a nova configuração da ciclovia da Almirante Reis, que atravessa uma das freguesias mais populosas da cidade e liga a parte baixa e alta da cidade, está a ser concluída, depois de vários meses de obras que se iniciaram em meados de Março. Faltam apenas os semáforos na zona da Alameda.
A história da ciclovia
Nem sempre esteve prevista uma ciclovia na Avenida Almirante Reis, sendo que esta chegou a estar pensada apenas entre o quarteirão do Banco de Portugal e o Martim Moniz, passando pela contígua Rua da Palma. Em 2014, uma ciclovia no eixo Av. Almirante Reis/Av. Guerra Junqueiro/Av. de Roma venceu o Orçamento Participativo de então. Em Janeiro de 2020, a Câmara de Lisboa anunciou uma ciclovia na Avenida Almirante Reis como parte do projecto ZER ABC – que envolvia a eliminação parcial dos automóveis do centro histórico da cidade. Em Junho do mesmo ano, concretizou essa mesma ciclovia através de uma solução pop-up e com uma tipologia bidireccional no lado ascendente da avenida – e não no descendente, como estava previsto inicialmente. A alteração terá sido motivada pela facilitação do acesso das ambulâncias tanto ao Hospital de São José como à baixa da cidade. (Depressa se veio a descobrir que a ciclovia poderia ser, simultaneamente, um canal de emergência e tanto ambulâncias como veículos dos bombeiros passaram a utilizá-la para escapar ao trânsito automóvel, à semelhança do que já acontecia noutras cidades.)
A solução pop-up concretizada no final de Junho de 2020 apenas precisou de alguns dias de obra para ficar concluída e surgiu sem aviso prévio aos moradores e comerciantes da zona – fora o pequeno evento de nicho que a Câmara de Lisboa tinha feito, no início do mesmo mês, para revelar o seu plano de ciclovias pop-up como resposta à pandemia de Covid-19.
A Avenida Almirante Reis ganhou, assim, uma ciclovia entre a Praça do Martim Moniz e a Praça do Chile, que seria para prolongar, em Setembro de 2020, até à rotunda do Areeiro na mesma configuração bidireccional. Os ciclistas depressa agradeceram a nova infraestrutura, tendo pintado corações vermelhos no chão, enquanto que em grupos online de vizinhos (e não só) se questionava aquela intervenção, a não existência de aviso prévio e a sua utilidade pública. Afinal, a ciclovia tinha aparecido de um momento para o outro, criando um impacto numa das avenidas principais e mais dinâmicas da cidade.
Em Novembro, atenta às duras críticas, a Câmara de Lisboa anunciou rever a ciclovia da Almirante Reis e implementar uma nova configuração no início de 2021: em vez de um troço bidireccional num dos sentidos, propunha-se uma tipologia unidireccional em cada sentido. As obras arrancaram apenas no final de Março, mas, apesar da tentativa de chegar a um maior consenso entre todas as partes (ciclistas, automobilistas, moradores e comerciantes), o núcleo Vizinhos de Arroios – uma das vozes mais contestatárias à ciclovia da Almirante Reis – manteve a suas críticas, reiterando a sua proposta de regressar às duas vias de trânsito em cada sentido com uma delas a ter um limite de 30 km/h e a ser partilhada com bicicletas.
A construção da nova ciclovia na Almirante Reis decorre desde Março e, apesar de no geral a ciclovia já estar funcional há largos meses, as obras ainda não estão concluídas (a conclusão esteve prevista para o início do Verão). Primeiro, foi apagada a ciclovia antiga e desenhada a nova, troço a troço. Pelo meio, houve uma mudança dos segregadores inicialmente seleccionados, porque não eram compatíveis com alguns veículos de emergência – optou-se por um modelo da Zicla. Decidiu-se pintar todo o eixo ciclável, algo que não estava nos primeiros planos. Contrariando também o projecto apresentado, foram criadas ilhas com semaforização e feitas algumas alterações na circulação viária da avenida para melhorar a coexistência entre todos. Houve paragens de autocarro relocalizadas, e lugares de cargas e descargas ou de paragem rápida criados ao longo do eixo. Ao mesmo tempo, a Rua João das Regras, entre a Praça do Martim Moniz e a Praça da Figueira, foi intervencionada pela Junta de Freguesia de Santa Maria Maior para ganhar calçada e uma configuração definitiva de ciclovia (a rua tinha sido pedonalizada no âmbito do programa A Rua É Sua).
Com a concretização desta nova configuração, caiu a ligação ao Areeiro. A Câmara de Lisboa optou por realizar a ciclovia apenas entre o Martim Moniz (inclusive) e a Alameda, ligando aqui à infraestrutura da Guerra Junqueiro. Para chegar ao Areeiro, será preciso subir esta avenida, passar pela Praça de Londres, depois Avenida de Paris e apanhar o novo troço de ciclovia que vai pela Avenida Afonso Costa até às Olaias. A conclusão da ciclovia na Almirante Reis até ao Areeiro foi retirado dos planos de expansão da rede ciclável da autarquia.
Criar a ciclovia sem diálogo foi um erro, acabar com ela seria um novo erro
Pedro Sanches, da direcção da MUBi, responsável pelo núcleo de Lisboa da associação que procura representar os utilizadores de bicicleta, não tem dúvidas: “A ciclovia da Almirante Reis e outros projetos surgiram sem planeamento estratégico participado. Acabar com a ciclovia agora seria cometer exatamente o mesmo erro de uma execução casuística, repentista e errática. Está na altura de pensarmos todos o que desejamos para Lisboa num processo de planeamento formal, com a participação de todos como o seu elemento central.”
“Transformações do espaço público caídas do céu terão sempre muitas dificuldades em ser aceites e é natural que gerem contestação”, refere o engenheiro civil de 38 anos. “Mas participar não é perguntar o que é que as pessoas desejam, é começar um diálogo sobre as consequências e malefícios do abuso do automóvel, das velocidades excessivas, sobre a autonomia e liberdade das crianças, sobre a saúde e segurança dos idosos e sobre a qualidade de vida de todas as pessoas.”
“Ainda é difícil que os comerciantes entendam os benefícios dos modos activos em detrimento do estacionamento ou circulação automóvel. Do mesmo modo, para os moradores, não é concebível que o espaço dedicado à circulação seja reduzido porque isso vai causar trânsito, filas intermináveis, poluição”, observa ainda Pedro. Para o responsável da MUBi, utilizador da bicicleta em Lisboa desde 2010, pai de duas meninas transportadas diariamente de duas rodas até à creche, não se pode falar para dentro, apenas para quem se vai interessando pelo tema, e que a linguagem deve ser o mais abrangente possível. “Fenómenos como o da evaporação de tráfego são apenas compreendidos por quem dedica parte do seu tempo a estas causas, não sendo muitas vezes entendido pelo cidadão comum.”
Na segunda configuração da ciclovia da Almirante Reis, a Câmara de Lisboa parece ter procurado um desenho mais consensual. A ciclovia bidireccional passou a duas unidireccionais, uma em cada sentido da avenida, com excepção da Praça do Martim Moniz e da Rua João das Regras. Permite ir da Praça da Figueira até à Alameda através de um trajecto rápido e directo que passa por vários bairros populosos da cidade, como são os de Arroios e de Anjos, e ligando a parte baixa da cidade à parte central desta, onde existem muitos serviços, comércio, escolas e universidades, e outros bairros habitacionais populosos.
Em toda a extensão da avenida e da contígua Rua da Palma, a ciclovia desenvolve-se ao longo do separador central, opção tomada devido à existência de carris de eléctrico, de saída de metro e de árvores nas laterais. A nova tipologia unidireccional permitiu aumentar o espaço destinado à bicicleta, com os ciclistas a terem, em cada sentido, corredores superiores aos 1,50 metros recomendados no Manual de Espaço Público da autarquia.
Também a circulação automóvel beneficia com esta configuração do corredor ciclável, uma vez que, apesar de continuar a existir uma via de trânsito no sentido ascendente e de no sentido descendente as duas vias terem sido reduzidas a uma, a largura disponível para o tráfego generalizado é maior. Isto permite, conforme se pretendia, que no caso de um veículo encostar à direita os outros possam ultrapassá-lo com facilidade. Com a alteração dos segregadores para o modelo aplicado, que é resistente e tem uma baixa altura, a ciclovia pode inclusiva ser invadida com facilidade em caso de necessidade, sem comprometer a segurança de quem nela circula, nem a fluidez do tráfego ciclável. O Lisboa Para Pessoas testemunhou, por diversas vezes, veículos a contornarem pela ciclovia um autocarro a largar passageiros, um camião do lixo a recolher os caixotes ou um veículo parado em segunda fila, realizando essa manobra com cuidado de modo a dar prioridade aos utilizadores da via ciclável.
Na maior parte da avenida, as intersecções são simples, uma vez que o trânsito da avenida não está autorizado a fazer viragens à esquerda ou à direita. Existem algumas excepções que foram resolvidas atempadamente com semaforização específica, como aconteceu na zona do Mercado de Arroios, ou com a eliminação da autorização de viragem, como na intersecção com a Rua José Falcão, perto da Praça do Chile (que futuramente será uma rotunda). Ainda assim, convém circular com cuidado redobrado nesta zona, pois podem existir ainda condutores pouco habituados à nova dinâmica da avenida.
Uma ciclovia mais consensual?
Apesar do reajuste feito na configuração da ciclovia, Pedro Sanches não consegue considerá-la consensual “devido às lacunas na participação e envolvimento da sociedade civil”. O responsável da MUBi não tem dúvidas de que “é essencial que este eixo contemple soluções seguras para os modos activos” e que, apesar de ser “praticamente impossível chegar a consensos nesta temática”, é importante haver uma co-construção de soluções, “onde todas as partes possam participar para que se chegue a uma solução satisfatória onde, à priori, alguém, se não todos, terá de ceder em parte da sua argumentação”.
Pedro lamenta “décadas de decisões ad hoc e opacas” do lado da autarquia e a inexistência de um plano de mobilidade para a cidade, que seja construído de forma participada e partilhada além dos gabinetes da vereação. “Acresce que o Plano Municipal de Segurança Rodoviária, de cujo conselho consultivo a MUBi faz parte, deixou de ser participado em 2019 e nunca foi entregue. Já o Plano de Acessibilidade Pedonal foi praticamente abandonado.” A MUBi já tinha sugerido a criação de uma Comissão de Acompanhamento de Planeamento e Projecto para a Mobilidade Activa, que pudesse, não só trabalhar no desenvolvimento das novas infraestruturas, mas também das “promessas não cumpridas” pelo município, como a correcção dos erros das ciclovias e infraestruturas de primeira geração, ou a criação e disseminação de zonas 30 km/h em grandes áreas da cidade, segundo exemplifica Pedro.
“O argumento de que não se pode levar tudo a discussão pública sob pena de tornar os processos intermináveis, não pega e pode acarretar estas sensações de descontentamento e insatisfação.” As Assembleias de Cidadãos, uma das promessas de Moedas, podem ser instrumentos interessantes também da perspectiva do engenheiro civil. É preciso “fazer ver à sociedade e aos decisores que existem ferramentas que podem ser usadas para o envolvimento e participação na construção de soluções que sejam satisfatórias para todas as partes” e que envolvendo, instruindo, educando e explicando facilita-se a “aceitação por parte das pessoas” em relação a mudanças estruturais nas ruas das cidades e dos bairro.
Inícios e fins complicados
A ciclovia da Avenida Almirante Reis pode não ser perfeita mas a actual configuração mostra, apesar de tudo, uma vontade de gerar consensos. Com a criação de zonas de paragem para cargas e descargas e outros fins ao longo da avenida, o alargamento das vias de trânsito e a colocação de segregadores que permitem o uso da ciclovia em caso de necessidade, consegue-se responder a uns e aos outros, sem colocar em causa a existência da infraestrutura ciclável ou a sua segurança. Entre Outubro de 2019 e o mesmo mês em 2020, foi registado um aumento de 140% da utilização do eixo da Almirante Reis por ciclistas, segundo dados das contagens realizadas pelo Instituto Superior Técnico.
“Olhando para a atual solução, os ilhéus e os segregadores poderão trazer um pouco mais de segurança aos utilizadores. Mas é também importante perceber que esta pode ser uma falsa percepção de segurança“, alerta Pedro Sanches. “Este facto fortalece a necessidade de melhoria das condições de segurança na utilização dos canais, seja por melhoria da solução actualmente implementada, seja pela redefinição e transformação de fundo do espaço público ao longo da avenida.”
As partes mais críticas do eixo ciclável da Almirante Reis estão nas suas duas pontas. De um lado, na Praça do Martim Moniz os pilaretes de borracha previstos no projecto foram trocados pelos Zicla colocados na extensão da avenida. Já existiram relatos de estacionamento indevido na ciclovia, apesar de o Lisboa Para Pessoas ter constatado um respeito geral pelo espaço da bicicleta. Por outro lado, os atravessamentos cicláveis existentes no Martim Moniz podem deixar alguns utilizadores desconfortáveis e dependentes da atenção dos condutores: do lado da Rua da Palma, os ciclistas precisam de garantir que são mesmo vistos e, do lado da Rua João das Regras, o atravessamento é muito longo e por vezes sem visibilidade devido ao eléctrico.
Por falar em Rua João das Regras, apesar de totalmente pedonal, as esplanadas acabam por ocupar uma grande parte do espaço calcetado, pelo que muitos peões vão preferindo a ciclovia, que, por outro lado, oferece também um piso mais liso. Prevê-se que esta rua, apesar de ter uma ciclovia segregada, venha a ser mais um espaço de coexistência.
Já na zona da Alameda, a ligação com a Avenida Guerra Junqueiro faz-se com uma estação GIRA pelo meio, obrigando os ciclistas a contorná-la, atendendo às pessoas que estão a usar essa estação ou que estão a caminhar por aquela zona. Existem dois atravessamentos cicláveis aqui: um para ir das ciclovias unidireccionais localizadas no separador central da Almirante Reis para o passeio da Alameda e outra para chegar daqui à Avenida Guerra Junqueiro. Estes dois atravessamentos serão semaforizados e, no caso do da Guerra Junqueiro, existirá uma sinalização luminosa reforçada para os condutores. (A semaforização na Alameda ainda está a ser instalada, encontrando-se desligada à data deste artigo.)
Mas, conclui Pedro Sanches, “o importante nesta fase será ser-se coerente e não dar vários passos atrás na mobilidade deste eixo, apenas por capricho, removendo uma infraestrutura que, para todos os efeitos, tem tido um aumento de utilização substancial, para deixar os utilizadores de bicicleta novamente à mercê do perigo rodoviário”.