Vale de Santo António: uma consulta alternativa

Opinião.

O Vale de Santo António é um recurso valioso para o futuro vivível da cidade.

Vista do Vale de Santo António (fotografia LPP)

Imagine um enorme espaço – de 48 hectares – abandonado há décadas no meio da cidade.  Imagine que é um espaço que tem potencial para tornar Lisboa uma cidade muito mais habitável, não só no presente, mas também para as gerações futuras.

Quais seriam as suas ideias?

A Câmara Municipal de Lisboa classifica o projeto de mega urbanização como a “maior operação de requalificação urbana da cidade, depois da Expo 98 e da Alta de Lisboa”.  Está previsto um plano que envolve a construção de cerca de 2.400 casas. O projeto enquadra-se, supostamente, no programa Renda Acessível, mas tem-se levantado a questão se, pelo contrário, contribuirá para a especulação e a construção de mais apartamentos de luxo.

Acreditamos que o atual projeto do Vale de Santo António é uma solução do século XX para os desafios do século XXI. Por isso, é hora de nos perguntarmos: como transformar este espaço para as pessoas no imediato, mas também para as gerações do futuro?

Vista aérea da zona planeada, disponível aqui.

Porquê uma consulta alternativa?

Lançámos o desafio deste inquérito, porque acreditamos que é necessário fazer uma verdadeira consulta sobre o futuro do Vale de Santo António. O nosso objetivo é estimular a imaginação das pessoas e informar o pensamento institucional.  

O nosso argumento baseia-se no facto de ninguém ter dado um passo atrás e se ter perguntado se uma proposta que foi ressuscitada repetitivamente ao longo das últimas décadas será a melhor resposta aos desafios que a cidade enfrenta agora e irá enfrentar no futuro. 

Houve várias consultas públicas, no entanto, foram limitadas. Os resultados da última consulta realizada em 2020, por exemplo, nunca foram publicados. Por isso, propomos um processo mais dinâmico e transparente.  Em vez de replicar o processo de ‘carimbo’ da consulta pública habitual, que não dá a possibilidade de questionar os princípios primordiais, decidimos fazer perguntas mais profundas e alcançar, de maneira proativa, um público muito mais alargado.

Desenho do projeto do Vale de Santo António, apresentado pela Câmara Municipal de Lisboa, disponível aqui

Há quanto tempo está este projeto a ser desenhado?

Este projeto tem uma longa e atribulada história.

A construção em grande escala no Vale de Santo António é contemplada como uma possibilidade há pelo menos meio século. Já a Empresa Pública de Urbanização de Lisboa (já extinta) previa a construção de seis torres e 50 pequenos edifícios colectivos no âmbito do Plano de Urbanização do Vale Escuro, nos anos 1970. O projeto nunca foi completamente realizado.  Desde então, os planos foram várias vezes alterados e, enquanto tudo isto acontece, a zona tem sido totalmente negligenciada.

Maqueta do projecto original – parcialmente realizado – publicada na revista Binário, páginas 205-206; Janeiro-Fevereiro 1976 (digitalização própria)

Será problemático construir neste tipo de terreno?

Muito. De todos os locais selecionados pelo programa Renda Acessível, é no Vale de Santo António que é mais difícil construir, sendo este local inadequado para este tipo – e escala – de construção. Em primeiro lugar, porque tem um declive acentuado, sendo classificado como uma das áreas acidentadas da cidade. Em segundo, porque o solo do vale de Santo António é composto por vários depósitos de argila e areia, onde é mais difícil construir, estando igualmente situado numa zona de risco sísmico máximo.  

E poderão todas as casas que estão vazias em Lisboa fazer parte da solução?

Se a intenção fosse realmente a criação de habitação acessível num prazo realístico, achamos que sim. Segundo fontes credíveis, o projeto do Vale de Santo António poderá custar ao contribuinte até mil milhões de Euros e levar décadas a implementar.

A cidade não tem falta de parque habitacional, com uma estimativa impressionante de 48 000 casas vazias ou abandonadas, num total de 730 000 casas no país. E estima-se que 2 000 destas casas sejam propriedade da própria CML. 

Podemos ilustrar o problema falando apenas das duas freguesias situadas ao longo do Vale:

  • Estima-se que 20% das casas de São Vicente, com uma população de 14.000 habitantes, estejam vazias ou abandonadas: 2 438 segundo o censo de 2021.
  • A Penha de França, com uma população estimada em 17.691 habitantes, tem cerca de 2 900 casas vazias ou abandonadas, um dos números absolutos mais elevados da cidade (também segundo o censo de 2021).  

O problema habitacional foi complicado pelos vários casos em que o património público com grande potencial habitacional foi vendido ou cedido para projetos turísticos e imobiliários. O Quartel da Graça e o Hospital da Marinha são exemplos pertinentes disso, os dois localizados perto da zona do Vale.  

Essa lógica é replicada em terrenos privados em que grandes projetos são licenciados que ocupam grandes áreas nas duas freguesias do Vale, para serem vendidos a preços incompatíveis com os salários praticados em Portugal.  Juntos, estes fenómenos diminuem as nossas opções quando se trata de planear o espaço urbano e resolver a crise habitacional.

Mas não parece uma loucura construir novas casas ao lado de tantas casas vazias? Parece correto colocar a especulação imobiliária, a venda do património público, disputas entre herdeiros ou senhorios sem escrúpulos à frente do bem comum? Não seria preferível a criação de incentivos que facilitassem a reabilitação de propriedades vazias no coração dos bairros, que precisam urgentemente de revitalização? 

Acreditamos então que é completamente sensato investigar soluções inteligentes e pragmáticas para criar habitação para as pessoas, onde essa habitação é necessária, na medida em que inverteria a degradação dos bairros em toda a cidade e criaria procura de empregos especializados. 

Além disso, é preciso evitar a libertação de grandes quantidades de carbono (“embodied carbon”) que estão associadas ao processo de construção nova – um fator cada vez mais decisivo no planeamento urbano no resto da Europa.

Não pretendemos dizer que esta será uma solução simples. Mas com mais e melhores ferramentas e incentivos – tal como alguns que já existem – os projetos de renovação trarão rapidamente mais benefícios e com muitos menos desvantagens.

Fotografia LPP

Quais são as possibilidades para este espaço?

Imagine, por um minuto, que este projeto não existia. O que é que você, como cidadão de Lisboa, desejaria ver implementado? Mais espaço para as crianças brincarem? Para os idosos usufruírem? Mais árvores que proporcionassem um arrefecimento natural, uma valiosa medida de mitigação contra as ilhas de calor (nomeadamente a zona vizinha da rua Morais Soares/Alto de São João)?

Acreditamos que temos a oportunidade e a obrigação de escolher um modelo de desenvolvimento urbano que nos conduza a um futuro em que as pessoas querem realmente viver.

Para que não reste nenhuma dúvida, o projeto atual inclui um parque, mas isto está dependente de um projeto cuja implementação vai demorar anos. E acreditamos que não há tempo a perder.

De qualquer das formas, do que a cidade de Lisboa precisa é de uma “infraestrutura natural” que produza um retorno de investimento em geral maior no que concerne o bem estar das pessoas e a protecção da cidade contra os efeitos potencialmente devastadores das alterações climáticas.

Lisboa já se comprometeu, por exemplo, a ser uma das 100 cidades europeias que atingirá o objectivo de zero emissões líquidas até 2030. Comprometeu-se também com o objetivo de que 90% da população esteja a menos de 300 metros de um espaço verde com mais de 2.000 m2, até 2030. 

São grandes e louváveis objetivos, mas não são compatíveis com projetos de construção com esta envergadura.  

Já há alguns exemplos positivos na cidade de um desenvolvimento mais forward-thinking, que estão a acontecer por toda a cidade, tais como, por exemplo, na recentemente anunciada ampliação do Parque do Vale da Montanha, ou a construção do Jardim do Caracol, um espaço que estava originalmente destinado a ser um parque de estacionamento e cujo plano foi alterado no âmbito do orçamento participativo, em 2016.  É importante notar aqui que as freguesias de São Vicente e Penha de França, que abrangem o Vale de Santo António, estão entre aquelas com menor área de espaço verde por habitante.  

Com o Vale de Santo António, a CML poderia tornar-se líder na tendência europeia de reimaginar os espaços urbanos de forma mais resiliente como os Jardines del Turia em Valência; os Eixos Verdes de Barcelona; o projeto Broadmarsh em Nottingham; o a iniciativa Städte wagen Wildnis em Hanover, Frankfurt e Dessau.

Estes são apenas alguns dos exemplos inspiradores, em que os habitantes puderam participar e responder à pergunta: do que é que a cidade e as pessoas realmente precisam?

Como responder ao inquérito 

Podem aceder ao inquérito junto com uma nota explicativa através deste link.  Existe também uma versão do inquérito disponível em Inglês aqui.  

Demora menos de 5 minutos a preencher e é anónimo. 

O inquérito vai decorrer até terça-feira, dia 31 de Outubro (Dia Mundial de Cidades).  

Como utilizaremos os resultados deste inquérito

Vamos utilizar os resultados deste inquérito ao longo da comunicação e discussões que existirão com as partes interessadas, em particular com a Câmara de Lisboa e com a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional, sendo estes os dois organismos diretamente implicados no desenvolvimento do projeto.

Por fim, utilizaremos os resultados deste inquérito para dar suporte e densidade à resposta ao pedido de consulta pública, cuja data e formato estão ainda por determinar.

Diga-nos o que pensa

Esta é a nossa perspetiva. Ao mesmo tempo, reconhecemos a importância de envolver um maior número de pessoas no processo de consulta e que é necessária mais informação sobre os desejos dos habitantes para este espaço da cidade.

Queríamos receber comentários, críticas e propostas alternativas. Após preencher o inquérito poderá contatar-nos através do e-mail que encontrará no fim.

Quem é responsável por este inquérito?

A iniciativa foi lançada por um grupo de residentes de Lisboa que se preocupam com este tema:

  • Hugo Warner, especialista em economia circular
  • João Baia, sociólogo e antropólogo
  • António Mota, estatístico
  • Ana Filipa Oliveira, especialista em comunicação e advocacia social.
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