“A mobilidade na cidade não pode nem deve estar condicionada a uma única ciclovia”, disse Carlos Moedas nesta quarta-feira, anunciando “um passo ao lado” e suspendendo a execução imediata da sua proposta de ciclovia.

No entender do Presidente da Câmara de Lisboa, “chega de manipular e bipolarizar a cidade”. Carlos Moedas decidiu retirar a sua proposta para que os trabalhos de construção da nova ciclovia na Avenida Almirante Reis avançassem. O projecto que tinha de uma terceira pop-up fica suspenso e na gaveta; poderá ser recuperado mais tarde mas o discurso do Presidente aponta agora para uma visão a longo prazo para aquela Avenida.
“Chega de manipular e bipolarizar a cidade. O tema é demasiado relevante para jogos partidários. A mobilidade na cidade não pode nem deve estar condicionada a uma única ciclovia. Foi isso que assumi desde a primeira hora. Continuo a acreditar que a solução que apresentei é a correcta mas neste caso é melhor para todos dar um passo ao lado para garantir uma prudente e uma fundamental serenidade nas discussões importantes para a cidade. Vamos continuar a trabalhar para repensar uma intervenção na Avenida Almirante Reis para todos. Congratulo-me com o facto de todos os vereadores terem revelado disponibilidade para em conjunto debatermos um projecto de longo prazo para a Almirante Reis, como sempre defendi.”
– declaração de Carlos Moedas enviada aos jornalistas nesta quarta-feira, 8 de Junho
O contexto
As declarações de Carlos Moedas surgiram depois de uma reunião privada do executivo municipal, que decorreu nesta quarta-feira de manhã, e na qual se discutiram, em extra-agenda, duas propostas sobre a ciclovia da Avenida Almirante Reis:
- uma proposta conjunta do BE, Livre e Cidadãos Por Lisboa (CPL) que pedia que a nova ciclovia naquela avenida fosse suportada por pareceres técnicos e por um período de consulta pública não inferior a 45 dias e com todos os processos, documentos e relatórios associados a uma consulta pública formal;
- e uma proposta de Carlos Moedas para que a empreitada já em curso na Avenida avançasse conforme tinha sido calendarizado pelo seu Gabinete.
Podes consultar as duas propostas aqui:
Moedas acabou por tirar a sua proposta, o que significa que, na prática, não avança qualquer obra na Almirante Reis. Não significa que o Presidente da Câmara tenha desistido do projecto pop-up que tinha para aquela avenida, mas significa a suspensão do mesmo por tempo indeterminado. Na sua declaração, Moedas afirmou que continua a acreditar na solução que apresentou, mas falou em dar “um passo ao lado” e em debater “um projecto de longo prazo para a Almirante Reis”. A discussão e votação da proposta do BE, Livre e CPL foi adiada para uma reunião futura.
A proposta de Moedas

Trabalhada dentro do Gabinete de Carlos Moedas, num processo liderado pelo assessor do Presidente e arquitecto João Castro, a proposta entendia o seguinte:
- eliminar a ciclovia no sentido ascendente, devolvendo as duas vias de trânsito nesse sentido. Colocar toda a ciclovia, em formato bidireccional no sentido descendente;
- a pista ciclável continuaria a funcionar como corredor rápido de emergência;
- limitar toda a Avenida Almirante Reis e Rua da Palma a 30 km/h entre a Alameda e o Martim Moniz com sinalização horizontal e vertical;
- alterar os sentidos de trânsito na envolvente do Mercado de Arroios.
Podes conhecer a proposta em maior detalhe aqui, consultar a apresentação realizada na última sessão pública aqui, ver o projecto pormenorizado aqui e consultar alguma documentação adicional aqui.
A principal premissa para a proposta de Moedas foi uma necessidade de melhor escoar o trânsito no sentido da saída da cidade. O Gabinete do Presidente apresentou alguns dados que evidenciam uma transferência de tráfego para arruamentos paralelos, de bairro, com a implementação do canal ciclável na Almirante Reis.
A nova ciclovia deveria custar entre 290 e 400 mil euros.
“Um passo ao lado” ou um recuo?
A posição do Presidente durante a reunião privada desta quarta-feira e a sua declaração enviada posteriormente comunicação social foram depressa entendidos pela oposição representada na Câmara Municipal como um recuo de Moedas:
- o PS disse que, se Moedas não tivesse retirado a proposta, os socialistas se iam abster – “mesmo não concordando com desenho” –, pelo que a mesma iria ser aprovada. “Temos um Presidente que não quer governar, mas vitimizar-se. Dizer que não quer polarizar o debate no preciso momento em que sabe que tem maioria, depois de ter passado semanas a acusar a oposição de não o deixar governar, é elucidativo sobre os seus propósitos”, critica o PS, citado pelo Público;
- do PCP, o vereador João Ferreira comentou: “Para quem num dado momento tinha tantas certezas sobre aquela ciclovia e sobre o que era necessário fazer na Almirante Reis, de repente passámos a um momento em que é só hesitações e alguma desorientação. Isso não deixa de constituir motivo de alguma surpresa, mas, de facto, parece indiciar é a falta de uma visão sobre o que se pretende para aquele eixo“, disse, citado pela Lusa;
- o Livre saudou, em comunicado, a decisão de não avançar para já com obras, por considerar que poderiam “prejudicar a circulação de ambulâncias na Almirante Reis e pôr em risco a segurança dos ciclistas”. Acrescenta que “a decisão do Presidente evita uma polarização desnecessária de um tema que a todos interessa, ao mesmo tempo que abre espaço para a realização da consulta pública”;
- já o BE, pela vereadora Beatriz Gomes Dias, disse que “é necessária uma solução de requalificação de toda a avenida e eixos adjacentes e apresentará iniciativa própria para esse debate que Carlos Moedas indicou que se faria após a discussão da alteração provisória para a ciclovia da Almirante Reis, tempo que agora se inicia”. Disse estar “disponível para reuniões de trabalho para chegar a uma proposta de consenso”.
Recorde-se, no entanto, que numa entrevista ao Público em Abril de 2021, quando ainda era candidato com o objectivo de derrotar Medina em Setembro desse ano nas eleições autárquicas, tinha declarado o seguinte: “a ciclovia da Avenida Almirante Reis é para acabar”. No entanto, o processo participativo promovido pelo Gabinete de Moedas no início deste ano tornou evidente de que a ciclovia não iria a lado nenhum – o Presidente tinha mudado de posição e procurava agora uma solução que consensualizasse o escoamento do trânsito no sentido ascendente com a manutenção de uma pista ciclável contínua e segregada no lado descendente.
Oposição forte da sociedade civil
Além de uma forte oposição da esquerda representada na Câmara Municipal de Lisboa, Moedas enfrentou vários protestos da sociedade civil. A saber:
- uma manifestação que terá reunido um milhar de pessoas em Outubro de 2021, um dia após a tomada de posse de Carlos Moedas. Os manifestantes percorreram a Avenida e terminaram o protesto nos Paços do Concelho;
- uma petição com mais de três mil assinaturas entregue na Assembleia Municipal no início de Dezembro de 2021;
- uma segunda manifestação com duas centenas de pessoas em Maio de 2022, integrada no movimento Massa Crítica. Os participantes percorreram a Avenida de uma ponta à outra ao som ao som de campainhas e de gritos como “mais bicicletas”;
- um piquenique-protesto que ocupou um troço da Avenida em Maio de 2022.
A Climáximo, um dos colectivos cívicos que ajudou a organizar alguns destes protestos, cantou “vitória”. Em comunicado, referiu que “a decisão de Carlos Moedas de recuar na proposta arcaica de retirar parte da ciclovia da Almirante Reis para introduzir mais carros na cidade peca por tardia, tendo-se perdido meses num conflito incompreensível em plena crise climática”. A Climáximo, um dos grupos de activismo climático mais activos no nosso país, entende que “a pressão popular e social foi determinante para este desfecho”.

Pareceres difíceis
A proposta de Carlos Moedas para a ciclovia da Avenida Almirante Reis, e que incluía também alterações na envolvente, teria um caminho ainda difícil pela frente. Pareceres dos bombeiros, da EMEL, da Carris e do Departamento de Gestão da Mobilidade (DGM) da própria Câmara Municipal apresentavam várias sugestões de melhoria.
Não sendo vinculativos, os pareceres – aos quais o Lisboa Para Pessoas acedeu e que tinham todos datas posteriores ao início das marcações no terreno – poderiam significar alterações ao projecto original e atrasos nas obras que, depois dos trabalhos preliminares desenvolvidos em Março, se iniciar-se-iam no dia 30 de Maio, com uma duração prevista de três meses. Nenhum dos pareceres apresentava um carácter negativo em relação à proposta de Moedas.
O que diziam, então, as diferentes entidades?
- do lado do Regimento de Sapadores de Bombeiros, o parecer datado de 30 de Maio indica que a nova solução é prejudical para o socorro e que “agora, a subir e a descer, os meios de socorro nunca ficam retidos no trânsito pois utilizam as ciclovias”. Os bombeiros acrescentam, no entanto, que “a solução apresentada tem vantagens de mobilidade dos meios de socorro” em relação à versão de Medina com pilaretes.
- do lado da EMEL, o parecer datado de Maio apresenta algumas sugestões sobre a semaforização. Por exemplo, na ligação à ciclovia da Avenida Guerra Junqueiro, a EMEL recomenda que o actual desenho dos atravessamentos pedonais e das ciclovias e que a semaforização já existente sejam mantidos.
- do lado da Carris, o parecer datado de 2 de Junho apresenta propostas práticas de alterações sobre a localização das paragens e a circulação dos autocarros. Várias preocupações da Carris dizem respeito com a Rua Carlos Mardel, na envolvente do Mercado de Arroios, onde seria preciso garantir que não existe estacionamento abusivo para ser possível a viragem dos autocarros na “curva muito apertada” logo no início da rua. Na mesma Carlos Mardel, a Carris diz que é preciso garantir a largura mínima de 3,65 metros em toda a rua e sugere um corredor BUS com pelo menos 50 metros no final da rua, “eliminando parte do estacionamento em espinha previsto neste projecto”, para aumentar “significativamente o fluxo de saída” da rua. Sugere ainda a criação de uma rotunda provisória na Praça do Chile, até que seja implementado o projecto em estudo para a avenida – a Carris diz que isso permitira tirar pressão da Rua Carlos Mardel e facilitar as viragens para a Rua Morais Soares;
- do lado da própria Câmara de Lisboa – por via do Departamento de Gestão da Mobilidade (DGM), que integra a Direcção Municipal de Mobilidade (DMM) –, um parecer datado de 3 de Junho, faz vários apontamentos. Indica que a circulação dos autocarros pela Rua Carlos Mardel, uma zona de “uso residencial”, iria pela “elevada frequência expectável” dos mesmos, induzir ao “aumento de nível de ruído” – sugere a alternativa da Carris de revisão da Praça do Chile. A DGM avisa ainda que a inclusão de dois sentidos de trânsito na Rua José Falcão poderá levar a um aumento do “volume de tráfego em horas de ponta na Rua Alves Torga/Rua de Arroios”, que “já está no limite, tendo em conta se tratar de uma zona de bairro”. O mesmo Departamento faz ainda outros apontamentos de pormenor, por exemplo, sobre atravessamentos pedonais, cargas e descargas, larguras de ruas, ou viragens à esquerda e direita de veículos.
O que vem aí?
Com o projecto de Moedas na gaveta, o assunto da Almirante Reis não fica, no entanto, suspenso. O que poderá vir a seguir?
- a discussão da proposta do BE, Livre e CPL, que poderá determinar um período de consulta pública sobre a Almirante Reis. Esta proposta já está submetida e terá de ser discutida e votada numa futura reunião camarária, a não ser que seja retirada – o que é pouco provável à data de hoje. No entanto, os partidos poderão reenquadrar esta discussão para ser mais sobre a Avenida como um todo e menos sobre a ciclovia;
- o Livre tem uma proposta preliminar para uma requalificação de fundo da Almirante Reis, que apresentou em Abril no espaço LACS, nos Anjos. O partido está, neste momento, a recolher contributos das pessoas para essa proposta no seu site. Deveremos conhecer novidades sobre este trabalho nos próximos meses;
- o PCP já anunciou que vai apresentar uma proposta para a criação de um Plano Urbano participado para a Avenida Almirante Reis que “integre e valorize uma verdadeira participação pública e actue no conjunto de problemas urbanos, ambientais, sociais através do cruzamento de conhecimentos e recursos”. Os comunistas querem pensar não só a Avenida mas toda a sua envolvente, incluindo o Largo de Santa Bárbara, o Largo das Igreja dos Anjos, a Praça das Novas Nações ou o Jardim Constantino, nas várias dimensões “do ponto de vista da biodiversidade, do usufruto pedonal, dos transportes públicos e da mobilidade”;
- em Setembro, deverão arrancar as obras de drenagem na Almirante Reis que vão interromper o trânsito num troço desta Avenida durante dois anos na zona do Intendente. Qualquer obra de relevo para este eixo só poderá avançar depois de 2024;
- não avançando a nova pop-up na Almirante Reis (pelo menos, para já), resta saber se a anterior versão será finalmente concluída. A semaforização na zona da Alameda encontra-se desligada desde que foi instalada ainda no mandato anterior.

Certo é que parece existir uma desistência do lado da liderança de Moedas para pensar a Almirante Reis a curto prazo. O Presidente da Câmara tinha referido no início do mandato que pretendia duas soluções para a Avenida: uma imediata para resolver os problemas que dizia existirem com a actual ciclovia; e outra a longo prazo para dignificar aquele eixo.
Em declarações à Lusa, no final da reunião desta quarta-feira, Carlos Moedas disse o seguinte: “A minha opinião sobre a ciclovia mantém-se: foi um erro. Aliás, ela foi feita e refeita, construída e reconstruída, portanto eu não quero agora cair outra vez aqui numa polarização de fazer e depois voltar a desfazer e voltar a fazer. Vamos pensar a longo prazo.” E empurrou uma conversa sobre essa solução para depois das obras do plano de drenagem.